Com joviais olhos brilhantes e curtos cabelos brancos: é assim que Domenica Pappacena Fulgido recebe a mim e às pessoas que a visitam em seu pequeno apartamento de 62 m², no qual mora sozinha. O forte sotaque italiano misturado com as palavras em português não deixam enganar a origem da simpática e baixinha idosa de 1,45 m de altura que, apesar dos 83 anos, ainda dirige, faz hidroginástica, visita os filhos e netos sozinha e claro, como todo bom italiano, cozinha muito bem.

Como foi sua infância? Quem eram seus pais e o que eles faziam?
Minha infância… Não posso dizer que foi mal ou “granderosa”, cresci no tempo da guerra, eu tinha 10, 11 anos quando ela começou, eu era pequena. Me lembro que minha mãe já mandava a gente aprender a bordar, costurar, e meu pai trabalhava como marceneiro, e trabalhava em Carbonia [comuna italiana], na Sardenha. Ele chamou minha mãe com “tudo os filhos” para ir pra lá (já éramos 6, o Gaetano, a Ninutcha, eu, a Bianca, a Nina e o Franco). Minha irmã mais velha ficou cuidando dos meus avós que estavam velhinhos, e então nós fomos à Sardenha. Depois começou a guerra e minha mãe voltou para San Valentino Torio, em Salerno – Nápole, terra onde nós nascemos, e ficamos lá, então veio a guerra e nesse tempo começou a lava, o Vesúvio explodiu.

Quantos anos você tinha quando isso aconteceu?
Já tinha 12 anos mais ou menos, na guerra a gente fazia fruta na terra da minha Nonna, mas lá tinham os alemães, que se apossaram da terra, se acamparam lá. Mas nós “tinha” fruto, fígo, pêssego, laranja, verdura, nós íamos lá pegar, eu e minha mãe, deixávamos os irmãos lá tudo na casa, porque logo vinham as bombas para bombardear a cidade e também Napole, por causa dos alemães que estavam por lá, e os americanos também. Então, por causa desses alemães aí, nós íamos escondidas colher a fruta, quer dizer, a gente nem passou fome. Tinha muita gente passando fome, que tinham o direito de comer 100 gramas de pão cada pessoa por dia, e às vezes minha mãe nem ia buscar porque a gente tinha farinha em casa. Cada produto, a batata, a cenoura, era só uma vez por ano que vinha, então a gente fazia reserva na cozinha. Meu pai tinha já matado um porco, tinha até linguiça. A gente não passou fome, mas foi sacrificante do mesmo modo, só do medo, e quando escutávamos os aviões, a sirene… Ihhh (barulho de sirene). Tinha um portão com muitas casas agrupadas, era a Portilla, eles fizeram um túnel embaixo das casas, e quando escutávamos a sirene, a gente fugia lá pra baixo, até passar. Depois do Vesúvio, chovia areia fina e depois pedras, cinzas, e a gente precisava de guarda-chuva. Uma vez eu estava no meio da Portilla e meu pai mandou sair de lá porque era perigoso, e até caiu uma pedra em mim. E depois a gente precisava tirar isso tudo das casas, porque senão a casa caía, por causa do peso, afundava. À noite a gente não saía de casa, nem de dia, a minha mãe não deixava. E os “alemãe” pegava as moças e os moços, fazia prisioneiro pra ajudar, e as mulheres para descascar batata e servir eles. Uma noite a gente estava dormindo e escutou um tiro, mataram uma moça, porque ela não quis ir com eles. A gente não saía, não tinha luz naquela época, não podia, por causa da guerra. A gente vivia de vela, e mesmo assim nos agrupávamos à noite, toda a gente que bordava, que escrevia.

Você tinha quantos irmãos?
Nove. A Gioseppina e a Nina, minha irmã freira, ainda moram na Itália. Um filho a minha mãe perdeu, por causa do “medo”, igual eu perdi. Perdi meu segundo filho, quando fui visitar um cunhado meu, eu estava no ponto de ônibus quando passou um cavalo atrás de mim. Naquele momento mesmo se virou tudo dentro de mim, e quando cheguei em casa já tinha perdido. Tive três filhos, um homem e duas mulheres.

Você ficou na Itália durante todo o período da Guerra?
Sim, eu fiquei lá até meus 27 anos. Aí me formei como costureira, com 14 anos eu já costurava para fora.

Onde você fez o seu curso de costura?
Eu ia a Sarno, uma cidade depois da minha, fazia a marmita, tomava o trem, e ficava o dia inteiro lá pra aprender a costurar, ser modista. Esse costureiro era muito famoso que costurava “fino”, o Povoroma, um nome assim, ele era meio “bicha” (risos), mas tinha mulher e filho. Com 14 anos eu já fazia tudo, e para aprender o corte de costura, a aula de corte, minha professora vinha em casa, porque minha mãe não deixava a gente sair fora. E foi indo, conheci meu marido…

E como foi que você conheceu ele?
A gente se conhecia desde pequeno, a mesma parteira que “pegou nós” também, né. Sabíamos de qual família era. Mas eu não podia sair de casa que já tinha moço atrás de mim, e um monte de colega dele, mas eu nunca namorava ninguém, porque minha mãe disse pro meu irmão Gaetano que se eu namorasse com alguém não podia mais sair. Eu não queria o Andrea, não queria ninguém, mas ele mandava o namorado da minha irmã Bianca avisar que ele queria namorar comigo. Quando eu ia à missa ele vinha atrás de mim de bicicleta, conversando, perguntando do meu irmão, mas não me dizia que queria namorar comigo, de medo que eu falasse não para ele. Eu me apaixonei pela pessoa que era ele, o corpo, a altura, mas eu não queria saber. Mas quando tinha jogo dele no campo, eu ia assistir. Chegou um dia que ele veio para o Brasil e depois de 3 meses que ele foi, a família inteira dele invadiu minha casa para me trazer coisas da terra [do Brasil, enviadas por Andrea]. E assim, ele escreveu uma carta dizendo “Caríssimos Papa e Mama”, chamando meus pais de pai e mãe, pedindo minha mão em casamento.

Ele a pediu em casamento mesmo sem vocês terem muito contato?
É que eu acho que ele tinha certeza, já desconfiava que eu gostava dele. Ele combinou com a família dele, e chegou essa carta, e queriam a resposta. Eu pensei “meu Deus do céu, eu não quero ele”, e minha mãe falava pra eu ter calma. Eu tinha pena é da mãe dele, que vinha todo dia me trazer flores. Eu aceitei. Ficava insegura, mas quando eu recebia carta dele, eu ficava toda animada e apaixonada. Minha mãe me disse em uma carta “Olha, sei que você queria um mais bonito” – porque eu não gostava do nariz dele -, “mas eu tenho certeza que quando casar com você, ele te tratará muito bem.”
Troquei por 5 anos cartas com ele, mas eu não queria ir [para o Brasil], eu só vim pra cá 3 anos depois que minha mãe morreu, ela estava doente. A família toda do Andrea gostava de mim. O Nonno dele, Alfredo Emílio, era juiz, e uma vez teve um caso com a empregada. Nasceu o pai do Andrea, e como o Alfredo não podia assumir a criança porque tinha outra família, inventou um sobrenome para ele, “Fulgido”. Não tem mais ninguém na Itália com esse nome que não seja parente dele.

Então você veio aos 27 anos para o Brasil?
E o Andrea estava me esperando. Quando eu cheguei, todos disseram que ele me esperou.

Qual visão você tinha do Brasil quando chegou? Quais os contrastes com a Itália?
Era diferente o ambiente. Primeira coisa que não viemos a uma grande cidade, viemos a Realengo, no Rio de Janeiro, fiquei um ano lá, foi onde me casei. Quando cheguei no navio, o Andrea estava em cima do carro, e quando eu vi ele senti alguma coisa, um sentimento. Aí ele me abraçou e disse para irmos até a praça Mauá pegar a minha mala. No navio tinha um italiano, que falava “quando chegar ao Brasil, não fale borsetta” [bolsa em italiano] e ninguém sabia o que que era [em português]. E a primeira coisa que perguntei pra ele, por curiosidade, foi “Andrea, o que que é a borsetta?” e ele disse “Shiu!”. Descobri o significado depois de ter deixado minha bolsa presa para fora de um táxi e ficar gritando “a minha borsetta! Está pra fora!” (Risos.)
Quando eu vim pro Brasil, vivi depois de um ano na cidade grande, São Paulo. Veio a época de televisão, aqui está 50 anos atrasado, mas mesmo assim, como saí de uma cidadezinha (eu só saía de casa e ia a missa, e da missa pra casa), foi diferente.

Com quantos anos você casou?
Casei com 27 anos. Todas as minhas irmãs casaram com essa idade, só uma que casou aos 18, dez anos a menos. O Andrea queria casar por procuração antes de eu vir ao Brasil, mas eu não quis, não tinha intimidade, não conhecia ele direito pessoalmente. Antes eu até namorei 2 ou 3 rapazes, mas não durou uma semana, logo eles queriam me beijar e eu não quis, e não queria mais saber. Minha mãe dizia para não deixar nos tocarem, mas era só isso que ela dizia, mais nada, ela tinha vergonha.

Quais eram os deveres que você sentia ter como mulher na sociedade?
Minha mãe criou nós com responsabilidade desde pequena, erámos 6 mulheres (eu sou a quarta filha e a segunda mulher), e ela sempre trabalhou com costura e fazia as roupas para nós. A responsabilidade de cozinhar já era nossa desde cedo. Eu era a mais responsável pela casa. Depois que minha mãe morreu, eu que criei meus irmãos mais novos. Sempre pensei que o homem nunca pode mandar em você, nunca pode ser superior, sempre devemos fazer o que se quer, fomos educadas assim.

Qual sua perspectiva sobre como os valores eram antes e são hoje?
Mudou, mas como fui criada de outra maneira não me senti tão adaptada. Ficava incomodada quando meus filhos saíam, com isso de namorar antes do casamento. Só fiquei tranquila depois que casaram. Acho que a mulher perdeu uma coisa e ganhou outra, ela se cansa mais, porque precisa trabalhar. Tem empregada, mas os filhos não são criados da mesma forma, como com uma mãe e um pai por perto. Não é que sou atrasada, eu sempre trabalhei, mas sempre em casa para ficar perto da família. Mas a gente tem que acompanhar a época, cada um faz como se sente melhor… Todo mundo quer ser feliz, mas tem que saber escolher.