Gilmar Pereira SJ (Societas Jesu, sigla utilizada pela Companhia de Jesus) é uma das principais vozes entre os jovens jesuítas. Aos 30 anos, está concluindo mestrado na PUC de São Paulo em Comunicação e Semiótica e cursando Teologia na FAJE em Belo Horizonte, quando, ao final, será ordenado padre. Dedicado ao estudo dos pensadores contemporâneos, credita a Kierkegaard os pilares de sua atuação na Igreja. De passagem por São Paulo, ele falou sobre sua vida pessoal, a decisão de entrar para a Igreja, os jesuítas e suas concepções a respeito da atualidade.
A decisão de entrar para a Igreja (como comunidade) partiu de você mesmo ou sua família sempre esteve presente nas celebrações?
Minha família não era de participação eclesial intensa. Como a maioria dos católicos, cada qual fazia suas orações devocionais, frequentava esparsamente as celebrações e tinha seu credo com elementos sincréticos. Contudo, era uma família de fé. Comecei a participar da Igreja mais por questões pessoais na adolescência que por incentivo familiar. Comecei a me colocar questões existenciais bem cedo e fui encontrando sentido na fé.
Quais são as lembranças da infância e adolescência mais importantes antes de decidir tornar-se padre? Acredita em vocação ou sua futura ordenação é a construção de várias escolhas?
Vocação quer dizer chamado e Deus nos chama em nossa história. Vocação e construção de escolhas estão imbricados. É como uma poesia da Adélia Prado que se chama “Direitos humanos”. Nela, há um reconhecimento da atuação de Deus na pessoa e termina com uma frase: “Mas essa letra é minha”. Sou o autor da minha própria história. Não obstante, a leitura que dela faço se dá por um olhar teológico. A partir disso é que a escrevo. Olhando para minha infância e juventude vou colhendo esses sinais. Se somos imagem e semelhança do Criador, realizamo-nos e a sua vontade sendo, cada qual, “si-mesmo”. Algo como o “self” jungiano. E eu sou aquilo que vou me tornando. Olho com apreço toda a minha história e fica difícil de elencar os pontos mais importantes. Vai desde o parto complicado, passando pelas folhas que meu pai trazia para eu desenhar até os problemas financeiros e primeiros amores.
Quais os principais fatores para a sua decisão de transformar-se jesuíta? Houve algum sinal?
Quando olhamos para a própria história, percebemos elementos constantes que delineiam nossa personalidade. Ao olhar para a Companhia de Jesus (jesuítas) percebi elementos que eu já trazia em gérmen e que ali se mostravam de modo pleno. Foi uma sensação de olhar para as características básicas dos jesuítas e dizer: “Ei! Isso aí sou eu!”. Os sinais estão na sua própria história.
Por que escolheu os jesuítas? O que mais o atrai neles?
Antes de ser jesuíta eu fiz uma experiência em outra congregação religiosa e vi que não tinha a ver comigo. Saí e fui fazer outras coisas. Nesse período o apelo vocacional continuou. É como se eu não estivesse configurado ao que sou chamado a ser ou que faltasse refletir, na práxis, aquilo que eu era. Procurei os jesuítas por sua fama de mestres em discernimento. Acabei me identificando. Acho que o que mais me atrai é sua experiência profundamente humana. A Companhia de Jesus tem uma espiritualidade bem encarnada.
Qual a importância da Filosofia na ordenação de um padre?
Filosofia é importante para a vida. Cursei a filosofia não por causa da religião, mas por ela mesma. Percebo que um padre com uma boa filosofia consegue elementos para um bom diálogo entre fé, razão e cultura. Ajuda a sair de uma fé infantil e a ter um olhar acurado para as realidades.
Acredita que a Igreja está deslocada dos tempos modernos ou ela funciona como refúgio dos “bons costumes”?
É muito engraçado quando as pessoas falam da Igreja. Primeiro que a entificam, quase como se fosse uma pessoa. Segundo porque a tratam como um bloco monolítico. Na verdade, a Igreja são os seus membros. Ela é una mas é plural. Há diversas vozes e visões, às vezes conflitantes. Apesar do Magistério Eclesial se expressar em seus documentos, cada pessoa ou grupo faz uma hermenêutica diferente, conjugando os distintos documentos ao longo da história conforme sua própria visão. Há quem justifique seu medo do mundo e sua intolerância em um discurso religioso. Outros, por sua vez, apoiam-se no mesmo discurso para uma ação política engajada em favor dos oprimidos. Na casa da Igreja, cabem todos os seus filhos.
Quais os principais ideais defendidos pelos seguidores de Santo Inácio?
Posso sintetizar em dois princípios. Um é encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. O outro é buscar, em tudo, amar e servir. Ou seja, não há realidade na qual não possamos nos inserir e interagir. Há um olhar positivo para o mundo e uma vontade de contribuir para o seu pleno desenvolvimento. Desenvolver o mundo é contribuir para que ele alcance seu fim. Por isso, com frequência você verá um jesuíta trabalhando em algo que não seja estritamente religioso. Conhece quantas crateras lunares têm nome de jesuítas ou as contribuições do jesuíta Schweitzer na pesquisa de campo vetorial? E do motivo do assassinato dos jesuítas da UCA em El Salvador? Tudo isso é fascinante!
O que mudou na Companhia com a escolha do papa Francisco?
Objetivamente, nada.
As atuais declarações do papa sobre a aceitação dos gays e das mulheres que abortaram pela Igreja condiz com os pensamentos da Companhia de Jesus?
O pensamento da Companhia não é outro que o da Igreja e o de Jesus. Deus se faz homem para que o homem participe de sua vida. Assumir a humanidade é acolhê-la em todas as suas circunstâncias. O Papa se preocupa com essa acolhida. É claro que tal acolhida não desconsidera sua ética. Contudo, as perguntas mudam. O que levou alguém a abortar? Que auxílio se pode prestar a essas pessoas? Que exegese se faz dos textos bíblicos sobre a homoafetividade? Qual o compromisso eclesial com os direitos humanos?
Com o novo papa, a Igreja encontra-se em um movimento mais ecumênico?
Na verdade o movimento ecumênico é mais antigo. O papa Francisco, como um grande comunicador, tem feito isso ter mais visibilidade.
Os jesuítas são procurados por muitos jovens, a que deve esse fenômeno?
Há uma frase que repetimos entre nós: “Não há nada de humano que seja estranho a um jesuíta”. Acho que esse olhar livre para as dinâmicas que os jovens apresentam faz com que eles se sintam acolhidos e respeitados em seus anseios. Além do mais, não temos uma preocupação de proselitismo. Quando estou atendendo alguém, olho para ele, para sua realidade. Não fico pensando em um futuro católico. O outro não é uma presa a ser agarrada, é uma pessoa. Quando ela me narra sua história, atento para a sacralidade que a compõe. O outro é sagrado para mim e devo me aproximar com respeito e carinho.
Atualmente, várias passeatas estão tomando força defendendo os ideais da família tradicional (pai, mãe e filhos), pela fé (Igreja Católica) e pelos bons costumes (sociedade patriarcal, sem direitos às minorias). Quais as opiniões mais fortes nos bastidores da Igreja sobre isso?
No cenário eclesial de que participo, vemos tudo isso como um movimento burro. Como apoiar a ditadura? Não há consciência histórica nessas passeatas nem religiosa. O papa, em preparação para o Sínodo das Famílias, soltou um questionário para as dioceses do mundo tentando ampliar nossa visão pastoral. Como eles falam da fé sem levar em consideração isso? Mas é aquela coisa; tem gente que se julga mais católica que o papa. No fundo há outros interesses nessas marchas, sem falar de que isso é reflexo da insegurança diante da fluidez característica daquilo que chamam “pós-modernidade”.
Você acredita estar mais envolvido em qual corrente ideológica atualmente?
Sou parte do meu tempo. Com a derrocada das grandes utopias e o fim das grandes narrativas, tornou-se difícil a adesão a uma ideologia. Além disso, as ideias mudam e os ideais caem. Se algo nos ajuda a permanecer em um propósito, este algo é sempre uma paixão, ainda que seja por uma ideia. Mas tem uma série de autores que me influenciam. Kierkegaard é o principal. Nietzsche e Schopenhauer me ajudaram a crescer. Gosto de Gilbert Durand, Jung, Maslow, os autores da Escola de Frankfurt, Jean-Pierre Vernant, Morin, Habermas… Isso sem falar do mundo da arte. As pinturas de Guayasamin me comprometem mais que a ideologia de “O Capital”, de Marx. Contudo, se o pensamento não coaduna com a realidade, ele é estéril.
Por fim, como você se vê nesse mundo?
Sou alguém que insiste em existir. É fácil querer sair do mundo, justificando-se em uma pseudotranscendência, em vez de favorecer que as realidades humanas se plenifiquem. E não precisa ser religioso para fazer isso. Há muita gente perdida no “mundo das ideias”. Eu quero habitar a terra e “ser no mundo” plenamente. Acha estranho isso vir de alguém que será padre? Nem tanto. Uma das bem-aventuranças bíblicas é a promessa da terra. Eu sou terra, desejo-a e a ela voltarei! Na fé, olho o mundo e vejo que ele é bom. Se tem algo desfigurado, cabe a nós – a mim, porque tem que ser uma opção pessoal – darmos um jeito.