MILHÕES DE PESSOAS reunidas numa praça, atitudes capazes de transformar o rumo de um país, rostos comprometidos, movimentos a favor da paz: tais cenas foram vivenciadas com frequência pela juventude dos anos de 1960 e 1970. Em meio a militares e artistas, notícias do Vietnã e dos Beatles, estas décadas fervilharam pelos quatro cantos do mundo.

No Brasil, a ditadura militar mostrou suas garras; o Tropicalismo despontou como um dos movimentos mais importantes da nossa cultura; a economia cresceu exponencialmente e o chamado “Milagre Econômico” parecia render seus frutos. No panorama mundial, a Guerra Fria manifestou-se intensificando a dialética capitalismo/comunismo.

A cada geração, ser jovem possui novos significados e ambições – mas há sempre algo em comum: a juventude é um período conturbado, repleto de decisões, dúvidas, perspectivas, sonhos, medos e responsabilidades. Inconstante, tal como Tom Zé traduziu em Sofro de Juventude, canção de 1992: “[…] juventude, essa coisa maldita/que quando tá quase pronta/desmorona e se frita”.

Quarenta anos depois, aqueles jovens que utilizaram as mais variadas formas artísticas para contestar a ditadura já são adultos cheios de bagagem para refletir a respeito da juventude de seu tempo. Quais eram seus anseios, medos e planos? Afinal, o que faz com que essa época impressione tanto as gerações posteriores?

 Nas próximas linhas, você confere o depoimento de seis personalidades à Esquinas. Elas, que viveram toda a efervescência dos anos de chumbo, dividem particularidades de sua vida e opiniões a respeito da juventude contemporânea.

 

BERNARDO KUCINSKI, 75 ANOS

Jornalista, escritor e ex-professor da Universidade de São Paulo (USP)

“Enxergo a juventude de hoje com estupefação, pela facilidade com que mexem nos gadgets; com inveja, pela liberação sexual de que desfrutam; com pena, pelas dificuldades de emprego e clima de competição exacerbada que enfrentam; com lástima, pela carência cultural e ideológica que a caracteriza.”

 



ÊNIO GONÇALVES, 69 ANOS

Ator, diretor e dramaturgo

“Quando jovem, estudava jornalismo e arte dramática em Porto Alegre, onde nasci. Gostava de ler e escrever, além de namorar. Passava grande parte do tempo assistindo a filmes – sempre fui cinéfilo – e atuando. Em 1961, mudei-me para o Rio de Janeiro, onde trabalhei como jornalista e ator, profissão, esta última, que exerço até hoje. Naquela época vigorava o regime da ditadura, e jovens politizados, como eu, tinham poucas opções: ou mantinham o espírito e a revolta em silêncio ou partiam para a ação – muitos foram mortos pela repressão.

Por estar na imprensa, tinha acesso a notícias terríveis, mas que não podiam ser publicadas devido à censura. Eu via a situação brasileira com algum receio. Por exemplo: apenas por citar o nome do ditador de plantão, numa conversa entre amigos, podíamos correr o risco de ir em cana. Muitos porteiros de edifício, motoristas de táxi, garçons e até um técnico iluminador de teatro que conheci eram informantes do DOPS. Conversar sobre política nacional em público era um gesto de ousadia. Para driblar a censura, nosso trabalho, escrevendo e atuando, exigia de nós uma criatividade muito estimulante.

De um modo geral, o comportamento da juventude mudou muito – o que é perfeitamente natural. Acho que a intensa e banal comunicação eletrônica, o consumo desenfreado, a necessidade de ser uma celebridade – e tantas coisas mais – tornaram o jovem mais superficial, menos inquieto com relação ao mundo que o cerca e mais centrado em si mesmo. A internet, as novelas, os filmes americanos de ação e etc, têm muito a ver com essa situação. Entretanto, devo lembrar que a geração que antecedeu a minha também fazia uma série de críticas aos jovens daquele tempo, por causa das drogas e da liberação sexual.”

 

RONALDO CORREIA DE BRITO, 62 ANOS

Escritor, médico e psicanalista

“Eu achava que seria bem mais fácil servir aos meus semelhantes por meio da medicina. Não possuía uma medida do que fosse literatura e demorei a compreender de que maneira eu também poderia estar a serviço das pessoas por meio do que produzia como escritor. Esse conflito, ao mesmo tempo em que era paralisante, me despertava cada vez mais para a leitura e a escrita. Apesar de ser psicanalisado durante anos e investir numa formação, nunca atuei como psicanalista, pois achava que a escuta psicanalítica atrapalhava a minha escuta de narrador. O cinema foi uma brincadeira de juventude, um projeto que não toquei para frente. Hoje, posso escrever para cineastas, mas nunca frequentar um local de filmagens como diretor. É possível trabalhar bem com a literatura e a medicina, num convívio sem conflitos – muitos escritores fizeram isso, como Guimarães Rosa, Scliar e o russo Tchekhov.

A ditadura militar era uma realidade sombria, da qual não se podia fugir. Nunca ingressei em partidos, mas nem por isso deixei de indignar-me e reagir, do meu modo, ao terror que nos cercava. O ambiente universitário da época tornou-se medíocre por conta do afastamento dos melhores professores e do medo de transgredir uma normalidade estabelecida pela censura. Da mesma maneira que acontece hoje, havia vários tipos de jovens, mas os insubmissos não representavam a maioria. Muitos rapazes de classe média não estavam preocupados com a Primavera de Praga, nem com as revoltas estudantis na França, muito menos com as Ligas Camponesas ou o Movimento de Cultura Popular. Preocupavam-se com a garantia de seus direitos ao bem-estar e ao consumo, como acontecia desde os tempos do Brasil Colônia. Havia os engajados na resistência à ditadura, na luta armada e na contracultura. E também os que pensavam em ganhar dinheiro e viajar à Disney.

Hoje, mudaram as maneiras de olhar o mundo, assim como mudaram os interesses: o humanismo já não possui significado e o sucesso pessoal é mais desejado do que o engajamento numa causa social. Mas sempre existiram pessoas desinteressadas pela política. No entanto, quando surge uma questão mobilizadora, como a do impeachment de Fernando Collor, por exemplo, os jovens dão uma resposta muito positiva e eficaz.”

 

PEDRO MARTINELLI, 62 ANOS

Fotógrafo

“Fui um ovem com pegada de adulto, muito prematuro em tudo. Aos 17 eu trabalhava em jornal, com 20 vim para São Paulo e logo em seguida fui para a Amazônia, onde vivi por 3 anos. Minha vida era trabalhar: a delícia, o grande tesão, minha grande aventura. Meu barato era subir e descer do avião, cobrir acontecimentos, guerras, viajar. Eu tinha responsabilidade porque trabalhava em veículo de comunicação. Naquela época, você trabalhava escondido, contra o sistema. Tentava esconder o filme com as fotos, chegava no jornal sabendo que sua foto não sairia. As pessoas hoje não têm nem ideia de como era trabalhar sob aquele tipo de pressão – o medo de ser preso, torturado, morto. E nós éramos todos meio de esquerda. Tive vários problemas com censura, mas nós, fotógrafos, tínhamos um truque: tirávamos fotos, pegávamos o filme e jogávamos em qualquer lugar na rua, meio escondido, e colocávamos um filme virgem. Quando éramos presos, pegavam o filme virgem e a câmera. Assim que éramos libertados, voltávamos para o lugar onde as fotos foram abandonadas e recuperávamos todo o material.

Não sei o que os jovens fazem hoje, e não os acho interessantes – são cômodos, não têm história, não viajam. Não sinto mais vontade de fotografar esse jovem estereotipado, que é praticamente igual em todo o lugar do mundo. Como eu posso acreditar no jovem de hoje se tem esgoto dentro da raia olímpica da USP, considerada melhor universidade do país?”

 

GERSON CONRAD, 60 ANOS

Músico e ex-integrante da banda Secos e Molhados

“É claro que ser jovem na década de 1970 era diferente, principalmente se você imaginar que naquele tempo não tinha a tecnologia de hoje. Havia rádio e televisão, mas estes meios ainda estavam no início, as coisas eram muito cruas. Acho que antes a juventude tinha uma formação cultural muito mais embasada – isso fica perceptível na música, na qualidade de criação. A década de 1970 ficou conhecida como uma década muito criativa, artística e culturalmente falando, inclusive fora do país.

Hoje, percebo que essa música jovem está culturalmente pobre. Isso é muito triste para mim, que tive a sorte de ser um dos integrantes de um grupo musical com embasamento cultural – tanto que o Secos e Molhados virou um mito. Acho essa questão [da cultura pobre] triste para os jovens dos dias de hoje. Afinal, atualmente existe um leque de informações e muito mais alternativas. Antigamente, nós jovens só tínhamos espaço em televisão, rádio e jornal diário. Hoje, dentro da sua casa, você pode colocar uma nota num blog e ter milhões de acessos na internet. A postura do jovem deve ser de buscar novos espaços.

Nós vivíamos um regime de ditadura militar. A censura era acirrada e nunca se sabia que consequências os seus atos trariam. Até acho que existe repressão hoje, mas ela é muito mascarada. Existem limites, não tão diferentes dos que existiam na minha juventude, só que mascarados.

Claro que, se você conversar com pessoas da minha idade, elas vão dizer que no passado era melhor – porque dá aquele saudosismo, aquela nostalgia da juventude. Eu acho que toda época tem sua própria realidade, suas particularidades.”

 

FRANCISCO OLIVEIRA, 79 ANOS

Sociólogo, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e escritor

“Sempre fui um leitor voraz, decidi fazer Ciências Sociais por influência das minhas leituras. Com 16 anos já militava no Partido Socialista, lia autores internacionais e me interessava por eles.

A ditadura me salvou de ser um burocrata. Eu era funcionário da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene, e tinha uma carreira promissora. Durante a ditadura trabalhei em dois jornais, Jornal Opinião do Rio de Janeiro e o Jornal Movimento de São Paulo. Foi uma época muito contraditória, uma época de florescimento, com produções no cinema e produções intelectuais.

Fui preso duas vezes. No Recife, em 64, por ser substituto temporário do Celso Furtado na Sudene e em São Paulo, em 74, por escrever nos dois jornais de oposição.

Uma vez disseram meu nome completo e um torturador prestou atenção. Ele abriu a minha cela, perguntou se eu sabia que dia era e me falou que era sexta-feira da Paixão. Me entregou uma tangerina com um sonho de valsa e perguntou ‘Você acredita Nele?’. Respondi: ‘Dá para acreditar?’. Ele disse que sim e fechou a cela. Luis Roncari quis saber o que estava se passando, contei a ele. Luis ficou ansioso esperando sua tangerina e seu sonho de valsa, mas a única coisa que recebeu foi um pontapé na grade da cela, por ser descendente de italiano. Os DOPS eram mundos completamente irracionais, a única racionalidade que existia era que nós éramos os presos. Depois não terminou em nada, quando saí da cadeia, eu e o Antonio Tota saímos a pé. Perguntei a Tota: “O que vamos fazer agora?”, ele respondeu: “Vamos tomar uma cerveja?”. E assim fomos.

Não vejo diferença entre os jovens de minha época e os de hoje. Por que os jovens fazem isso e não aquilo, não sei dizer, talvez porque não tenha mais a ditadura, não há essa pressão. Tenho 8 filhos, nenhum deles tiveram a militância que tive. Acho que depende como cada um vive, como as coisas te penetram, te envolvem.”