“VAI CHEGANDO GENTE e a coisa vai crescendo e ficando grande na medida em que as pessoas acreditam nela.” É desta forma que Lívia Ascava, umas das fundadoras do Ônibus Hacker, define a formação dos coletivos, que nascem quando um grupo de pessoas se une em defesa de um mesmo ideal.
O fenômeno dos coletivos vem ganhando cada vez mais visibilidade. São Paulo e Rio de Janeiro contam com grupos que interferem no cenário urbano incitando reflexões variadas, como a forma de apropriação do espaço público e o modo como se dão as políticas de desocupação de moradias.
“Fazer parte de um coletivo é fazer o que se gosta sem pedir permissão para ninguém”, afirma Rodrigo Savazoni, um dos fundadores da Casa da Cultura Digital, coletivo que desde 2009 desenvolve projetos que têm tecnologia e cultura livre como pontos unificadores.
CULTURA DIGITAL À FLOR DA PELE
#VidaLaboratório, #ÉticaHacker, #Artivismo, #CulturaDigital, #Colaboração. Esses são apenas alguns dos conceitos por trás do coletivo Casa da Cultura Digital. Nascida da vontade de trabalhar com liberdade e produzir pelo bem comum, a CCD traz realizações como o Mapa da Cachaça, site de dicas de alambiques, a Metamáquina, empresa que fabrica impressoras 3D a baixo custo, e o Garapa, plataforma que desenvolve projetos de fotografia e vídeo. O coletivo concretizou-se quando um grupo de comunicadores encontrou um espaço onde conseguiam seguir com seus projetos sociais e culturais ligados à tecnologia.
No castelinho da Barra Funda, sede da Casa, todos trabalham à vontade e trocam ideias entre si. É dos cafezinhos na cozinha que surgem as melhores ideias.
De acordo com Savazoni, fazer parte de um coletivo é perceber que a colaboração é uma aliada e não uma adversária. “É estar sempre aberto para lidar com o outro e confrontá-lo, sem anular a singularidade”, diz. A Casa abriga empresas, pessoas, ONGs e iniciativas marcadas pela cultura digital, como a iniciativa do Baixo Centro.
O que começou na Casa da Cultura Digital como um simples projeto de ocupar as ruas de forma criativa e artística, hoje se expandiu e se tornou uma rede horizontal.
O chamado Baixo Centro engloba os bairros República, Santa Cecília, Campos Elísios e Vila Buarque localizados próximos ao Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão. Segundo Leonardo Foletto, jornalista e integrante do coletivo, o Minhocão veio a tornar-se o símbolo da região por ser uma aberração, “uma cicatriz no meio de São Paulo”. Pela falta de infraestrutura local e por ficar perto da CCD, a região foi escolhida para abrigar as intervenções urbanas.
Leo acredita que o Baixo Centro surgiu principalmente em resposta “ao cerco que faz com que as pessoas usem cada vez menos as ruas”. “Nós só entramos no debate e canalizamos o desejo de mudança de muitas pessoas, especialmente na região do Baixo Centro. Talvez seja por isso que o projeto se expandiu para muito além do que imaginávamos”.
AS RUAS SÃO PARA DANÇAR
Para marcar o surgimento do novo grupo, foi proposta a realização de um festival de música e arte com um mês de duração. A verba necessária foi captada via crowdfunding por meio do site de financiamento coletivo Catarse-me, o que para Leo “tem tudo a ver com a proposta do Baixo Centro.”
O valor pedido inicialmente era de 56 mil reais, do qual foi arrecadado cerca de 23 mil. Mesmo não conseguindo captar a quantia pedida, o grupo não desistiu porque percebeu que havia um grande desejo de que o evento se concretizasse. “Foi com o processo de se tornar conhecido que ele ganhou força. Tinha muita gente querendo fazer, não podíamos abandonar”, conta o jornalista. Em fevereiro de 2012, o projeto foi lançado novamente no Catarse-me, visando captar aproximadamente 14 mil reais. Porém, as expectativas foram superadas e o coletivo recebeu aproximadamente 20 mil reais.
A partir do festival criou-se um movimento que propunha uma continuidade para o Baixo Centro, não como festival, mas como uma série de pequenas intervenções. Para seguir com a ação, foi realizada uma festa junina no Minhocão, cujo financiamento também ocorreu pelo público, por meio do crowdfunding. Para Leo, a Festa Junina do Minhocão serviu para mostrar um pouco do funcionamento do coletivo. “A ideia partiu de pessoas que não participaram ativamente do primeiro festival, mas que se identificaram com a causa”, conta.
Mesmo com dois eventos bem-sucedidos, não existe a ideia de fazer outra grande festa, como as anteriores. O coletivo tem sido chamado para participar de ocupações e debates de grupos que compartilham dos mesmos ideais, como é o caso do Brecha Coletivo. De acordo com Leo, “O Baixo Centro está se inserindo na discussão sobre o direito à cidade e sobre a ocupação das ruas de forma artística, mas sem ter nenhuma atividade prevista.”
SOBRE QUATRO RODAS
O Ônibus Hacker é outra intervenção que saiu de dentro da Casa da Cultura Digital. O laboratório sobre quatro rodas reúne hackers que embarcam com um propósito comum: ocupar cidades brasileiras com ações políticas. O projeto começou em junho de 2011 dentro do Transparência Hacker, fórum online que questiona a omissão de dados públicos na internet. “Alguém falou brincando de ter um ônibus, o outro acreditou que daria certo, um terceiro falou: vamos colocar no Catarse-me”, comenta Lívia Ascava, participante do grupo.
Em dois meses, 464 pessoas doaram uma quantia de aproximadamente 58 mil e quinhentos reais, 18 mil a mais do que o pedido. O ônibus foi comprado, personalizado e começou a rodar para valer em 2012. Hoje, conta com 14 viagens pelo Brasil. Dentre os estados visitados estão São Paulo, Minas Gerais, Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
O objetivo central do Ônibus é brincar com a curiosidade sem pedir permissão a instituições. Segundo Lívia, a ideia é explicitar a “demanda por revisão de política pública, de exercício de direito”.
Os grafites da parte externa do “busão” instigam a curiosidade por onde passam. A frase “odeie seu ódio” e as ilustrações de carroceiros foram feitas por quatro artistas durante o “Pimp My Carroça”, evento que reformou carroças de catadores de rua (Veja a matéria Dá-se um jeito na página 34).
O interior é transformado de acordo com as necessidades. Colchões, cadeiras, mesas e pufes entram em cena dependendo da intervenção. As ferramentas necessárias para as ações, como o transmissor de rádio, cadeiras de praia e objetos de costura são sempre carregadas e, se faltar algo, é só parar e comprar.
As oficinas realizadas são variadas, indo desde “como consertar a sua própria bicicleta” até aulas de tricô. Elas são realizadas a partir de uma chamada pública, na qual as pessoas se inscrevem e sugerem projetos a serem realizados no ônibus.
Segundo Lívia, o maior diferencial do coletivo para a Casa da Cultura Digital é a heterogeneidade de perfis. O Ônibus Hacker acabou por criar uma rede nova. “Quando colocamos o Ônibus pra rodar é que fomos entendendo o que ele era”, comenta Lívia.
TEIAS DE COLABORAÇÃO
“Vi que esse caminho do diálogo do trabalho artístico voltado para a transformação do ambiente social estava me apaixonando”, relata Regina Miranda, idealizadora e coordenadora geral do Cidade Criativa. Mestra em Ciências com foco em Liderança Cultural, ela resolveu “incrementar o Rio de Janeiro”, buscando tornar meio-ambiente e cultura aliados.
Fundado em 2010, o Cidade Criativa tem em mente uma transformação gradual, que só poderá ser sentida em nível de cidade após dez anos – fato baseado em projetos de pesquisa feitos por Regina. “Somos uma grande teia que se pretende armar ao longo dos anos”, conta. A ação do coletivo se restringe a dar palestras e fazer intervenções artísticas que respondem às perguntas do povo, tais como: Quem são as pessoas que promovem essas mudanças comportamentais e culturais? Que políticas de integração podemos ter?
Para criar uma “rede inteligente”, o grupo formou parcerias com o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com a Fundação Casa de Rui Barbosa, com a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-RJ) e com a Prefeitura Municipal. Os parceiros tornam-se embaixadores do projeto, levantando a bandeira dos múltiplos significados que um espaço geográfico pode ter.
Regina descobriu em 2002 uma “casa de cômodos”. A estrutura é proibida: seu espaço físico possui subdivisões internas, podendo abrigar diversas pessoas em um mesmo repartimento. Após o achado, Regina percebeu que o bairro ainda abrigava outras dessas casas e procurou conhecer as pessoas que as habitavam, consideradas até então “invisíveis”.
A iniciativa de ajudar os moradores, reformando os imóveis e revendo suas relações com o resto da comunidade encantou a coordenadora. “O trabalho que inicialmente não tinha qualquer intenção de ser um tipo de ação social, passou a transformar as ações humanas na rua e modificou o próprio espaço urbano”, diz.
SAINDO DE TRÁS DAS CORTINAS
Já o coletivo Dolores Boca Aberta utiliza o teatro para dar visibilidade aos problemas da periferia paulista. Em 2000, quatro amigos se juntaram para formar o grupo que hoje conta com cerca de 25 integrantes e reivindica políticas públicas para o teatro. Segundo Luciano Carvalho, um dos fundadores, eles são feitores de uma estética de questionamento e de combate à ordem instituída do capitalismo.
Por ser rotulado como “comunista”, o Dolores enfrenta resistência à sua arte. “Somos taxados como teatro menor, o que é mentira” contesta Luciano. As peças contam com elementos que fogem do convencional devido ao seu fundamento nos pressupostos da classe trabalhadora e nos objetivos revolucionários.
Neste ano, o grupo ganhou o prêmio Shell de Teatro por sua pesquisa e trabalho continuado. Seus integrantes aproveitaram o reconhecimento para protestar contra a petroleira, que, segundo eles, apresentou medidas de avaliação da arte por um ideal burguês.
Em setembro deste ano, durante dezesseis dias os integrantes do Dolores e de outros grupos simpatizantes com a sua causa ocuparam uma praça pública na altura da estação Arthur Alvim, linha vermelha do Metrô. O movimento conhecido como Festival Teatro Mutirão – Ocupação Cultural, não apenas se apropriou do espaço como também ofereceu à vizinhança debates e apresentações de teatro e música.
Uma cena da peça Carne, apresentada pela Companhia de Teatro Kiwi, explicitava sarcasticamente o machismo escondido em letras de músicas populares. A ideia era que as mulheres da plateia se dessem conta da desigualdade entre os sexos e refletissem sobre a situação.
As artes cênicas também foram o ponto de partida para que surgisse, no Rio de Janeiro, o Brecha Coletivo. A estética não espetacular, uma intervenção sutil no cotidiano das cidades e o desejo de formar uma associação horizontal e não hierárquica, ampliaram a ideia inicial do fazer teatral.
Além de peças, o Brecha realiza flashmobs, ação inusitada préviamente combinada, com o objetivo de intervir artisticamente na cidade e no cotidiano. “Pensamos que a arte pode se relacionar de formas bastante distintas com a mobilização social. Parecenos potente a quebra do lugar distante entre espectador e artista, tirando o público de um lugar de contemplação e proporcionando uma forma de fomento à ação”, explicam os fundadores Rodrigo Lopes e Patrick Sampaio.
A ação Nova Higienópolis realizada em parceria com o grupo Baixo Centro foi considerada uma forma dos moradores do bairro Higienópolis, zona sul de São Paulo, vivenciarem o drama das comunidades que sofrem com transferências forçadas para a realização de projetos que nem sempre os beneficiam.
A intervenção durou cerca de 15 minutos, durante os quais os 20 participantes simulavam uma desocupação de casas e apartamentos para que se construíssem centros comerciais. O movimento fez alusão ao projeto Nova Luz e, segundo Rodrigo Lopes, “fez com que o debate sobre o direito à moradia fosse durante aquele curto espaço e tempo uma questão pessoal, que pudesse ser sentida pela classe média que habita Higienópolis”.
Para os idealizadores do grupo, o Brecha, sendo um coletivo, tem como meta “esgarçar os limites da vivência coletiva, provar a constância de um grupo que não se define, não se circunda. A brecha está sempre aberta.”