A formação musical brasileira vem da periferia. Da senzala, dos cortiços, dos morros, do povo. Capoeira, atabaques, dança, samba e canções aos poucos foram apropriadas pela elite, mas continuam populares em sua essência. A periferia continua criando, mostrando e cantando sua cidade. Jovens de todas as gerações se apropriaram da música para contar a sua história.
Como já cantara Criolo “Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo tem o mesmo valor que a benzedeira do bairro”. Do clássico instrumental às rinhas de Mc’s, da arte que vem de fora à criação da sua própria, a música aparece como símbolo de resistência e prosperidade. Enquanto o Instituto Baccarelli – que ensina musica clássica em Heliópolis – surge pela vontade de alguém de fora fazer algo pelo lugar, a Rinha dos Mc’s apareceu como forma de juntar aqueles que cantavam o seu lugar por meio do Hip Hop.
“Certo dia estava em casa de boa e me liga um cara chamado Kleber Gomes, mais conhecido como Criolo Doido, e me diz que fez uma batalha entre Mc’s”, conta Cassiano Sena, o DJ Dan Dan, fundador da Rinha. A princípio, a Rinha era uma simples festa entre amigos, na qual se praticava rimas e ouviam-se músicas que não tocavam nas baladas. A ideia foi tomando formato até se transformar no tradicional encontro de improvisação freestyle do hip hop brasileiro. O encontro abriu espaço para o rap, o grafite, a dança urbana e a discotecagem criarem resistência para uma arte até então pouco valorizada.
A Rinha acontece em três formatos: há o circuito Rinha Mc’s, o pocket rinha e a Matilha Cultural. Há também um evento especial chamado Festival Rinha dos Mc’s, que acontece uma vez por ano, agrupando diversas atividades culturais, como apresentação de Break Dance e show de Rap. Diante do aumento da proporção do evento e das suas formas de atuação, foi possível abrir diálogo entre os jovens artistas da periferia e do centro. Grandes nomes como Criolo, Rashid, Projota, Emicida e Flora Matos começaram nos encontros e despontaram. A Rinha tornouse uma vitrine para os jovens do meio hip hop. “O jovem cria a percepção de que ele pode ser um poeta, um escritor ou talvez um locutor”, expõe Dan Dan. “A rinha, que foi o berço de vários Mc’s, acrescenta no ‘currículo’”, complementa Mc Preta Ary, integrante do grupo D’origem, ao lado de Mc Meire e Dj D’soul. Para elas, não é só sair de casa e ir até o centro cantar por amor e encontrar com os amigos, mas também pregar e divulgar o hip hop.
Além da visibilidade proporcionada pela Rinha, de acordo com Dj Dan Dan, durante as batalhas são colocados assuntos importantes, cativando os ouvintes e formando lições de cidadania. “A cultura é do povo e a possibilidade de ter uma liberdade para ação é essencial para que ele possa usufruí-la”, afirma. A formação da cultura hip hop, pela sua complexidade adota do compartilhamento para ganhar força. Não é uma pessoa que o faz, mas o movimento que lhe dá tom. Não é só cantar Rap e gingar, o conceito abrange a arte e a integração social como uma coisa só.
O encontro da periferia com o centro gera discussões com o choque de culturas e realidades sociais. Dj Dan- Dan acredita que “a periferia hoje é moda”. Dessa forma, movimentos como a Rinha dos Mcs, que fazem de tudo para manter as bases da cultura de rua, da cultura hip hop, são cada vez mais importantes.
SOM DO CENTRO, SOM DA PERIFA
Se o centro incorpora a cultura da periferia, o inverso também ocorre. Em Heliópolis – maior favela da capital, e a décima maior do país – a música clássica é ensinada para 1.200 jovens do Instituto Baccarelli. Dos quatro aos 14 anos, os moradores de Heliópolis que estejam matriculados e frequentando as aulas da rede pública de ensino podem se inscrever no Instituto.
A entrada no Baccarelli se dá em grupos de aulas para crianças e no coral. Com tempo, surgimento da aptidão e do gosto pela música, os alunos podem passar para um curso coletivo de instrumento. Caso o aluno se destaque, ele passará a ter aulas individuais– ou seja, não significa que todas as crianças que entram no Instituto terão certamente um futuro profissional na área de música.
Todas essas etapas são perpassadas pela maioria dos jovens com o sonho de chegar à Orquestra Sinfônica Heliópolis. “É bom que o aluno acredite que ele possa vir a ser um músico profissional, pois quebra a ideia de que eles não podem ser por causa da sua realidade social. Mas a expectativa precisa ser trabalhada, na medida em que eles sabem que é difícil e necessita esforço”, diz Raquel Porangaba, responsável pelas relações públicas do Instituto.
Tanto o prédio do Instituto, como a Ação Educativa – aonde os Mc’s vão com frequência -, são locais marcantes, não só pelas paredes grafitadas do Ação, ou pelas salas coloridas e organizadas do Baccarelli, mas pelo preenchimento que a música dá a esses concretos.
Da cultura que vem de fora ou da cultura criada dentro das comunidades, as pessoas que participam desses movimentos fazem com que eles estejam em permanente transformação e crescimento. Mostrando, assim, que a frase da música de Criolo “não existe amor em SP” é mais uma provocação que um axioma.