Cena do multimídia Afrikaner Blood em que os meninos
aprendem técnicas de defesa e ataque

O SOL AINDA não nasceu por detrás da rala vegetação da região da Carolina, na África do Sul. Cerca de quinze meninos afrikaners, descendentes de holandeses e alemães, descarregam de um caminhão madeiras, lonas, cordas e mantimentos. Vestem-se com antigos uniformes do exército sul africano e armam um acampamento onde aprenderão, durante nove dias, como ser um “homem de verdade”. Um homem branco de verdade, capaz de defender a sua família dos violentos, inferiores, bárbaros e indignos negros.

Essa é uma das primeiras cenas de Afrikaner Blood, produção multimídia holandesa feita a quatro mãos pela jornalista Elles van Gelder e a fotógrafa Ilvy Njiokiktjien vencedor do 2º World Press Photo Multimedia Contest – maior prêmio do gênero multimídia. Herança do apartheid, o acampamento Kommandokorps para jovens afrikaners foi descoberto por acaso por Elles e Ilvy e, depois de um ano, tomou a forma de um multimídia envolvente, rico tanto em técnica quanto em crítica. À Esquinas, Ilvy Njiokiktjien, 27 anos, fala como foi produzir o Afrikaner Blood, viver o racismo tão de perto e ganhar o 2º World Press Photo Multimedia Contest.

 

Como você e Elles tiveram a ideia de fazer um multimídia sobreo acampamento Kommandokorps?

Nós estávamos na África do Sul cobrindo o funeral de Eugène Terre’Blache, um líder extremista do apartheid, e vimos um homem usando um uniforme antigo que nós sabíamos ser da época do apartheid. Ficamos curiosas. Fomos até ele e ele se apresentou como coronel Franz Jooste, líder de um acampamento que ensinava meninos brancos a se defenderem dos negros. Perguntamos se poderíamos ir ao acampamento fazer algumas fotos. Mesmo ele não se mostrando muito receptivo, nós decidimos manter contato até ele aceitar. Várias mídias de língua inglesa haviam tentado fazer reportagens sobre o acampamento – a BBC, por exemplo, mas só nós conseguimos. Acho que o que tornou o processo todo mais fácil foi o fato de eu e Elles falarmos africâner fluentemente. De certo modo, o coronel confiava em nós por causa disso.

 

Como foi a preparação para passar nove dias no acampamento e produzir o Afrikaner Blood?

Normalmente, Elles escreve e eu faço as fotos – tem sido assim pelos últimos cinco anos. Mas essa foi a primeira vez em que nós duas filmamos, gravamos e fotografamos tudo ao mesmo tempo. Usamos microfones, câmeras, cabos, luzes e tínhamos que registrar cada momento, cada frase que o coronel ou os meninos diziam. Nunca tínhamos feito um multimídia antes, então fiz um curso de três dias onde me deram uma lista enorme dos equipamentos de que iríamos precisar. Compramos tudo que estava na lista e começamos a fuçar na aparelhagem para descobrir como eles funcionavam. Mas mesmo nos primeiros dias do acampamento, nós não sabíamos direito como usar os microfones, câmeras e luzes. Pesquisamos na internet, levamos os manuais dos equipamentos para o acampamento e de madrugada nos debruçávamos sobre eles. Não tínhamos um roteiro porque não sabíamos como seria o acampamento, não tínhamos como preparar nem prever nada. Por isso ficamos felizes e surpresas por vencermos o World Press Photo Multimedia Contest. No dia em que nossa vitória foi anunciada o Afrikaner Blood tinha cerca de 30 mil views no Youtube.

 

Sobre a experiência em si, como foi estar em um acampamento com aqueles homens e meninos reafirmando a todo o momento um ódio imenso pelos negros?

 Foi muito difícil para nós porque moramos na África do Sul por um bom tempo, então temos muitos amigos negros. No acampamento, o coronel dizia coisas horrorosas sobre negros, judeus, gays, japoneses – sobre todos os que não são brancos. Eu e Elles queríamos dizer para os meninos que tudo aquilo era mentira e que eles não podiam pensar como o coronel. Mas não podíamos fazer isso ou estragaríamos a nossa história, colocaríamos tudo a perder. O tempo todo eles exaltavam a raça ariana e usavam Elles como exemplo, porque ela é branca, loira e tem olhos azuis. O coronel e os pais dos meninos, que os colocaram no acampamento, são totalmente loucos. Mas tínhamos que ficar caladas.

 

Como você disse, vocês tiveram que se manter neutras. No multimídia, muitas vezes os meninos estavam sofrendo, chorando, e vocês não podiam fazer nada, não podiam ajudá-los. Como foi isso?

Elles sentia pena dos meninos e não conseguia filmar o sofrimento deles em algumas ocasiões. Já eu era quem dizia “Vamos lá, nós temos que filmá-los porque precisamos mostrar isso para as pessoas!”. Algumas cenas foram difíceis de filmar porque tínhamos que ficar com a câmera muito perto do rosto deles enquanto eles choravam. Eles só comiam carne e legumes enlatados e em pouquíssima quantidade. De vez em quando, dávamos alguma comida nossa para eles para tentar fazê-los mais fortes. Durante as entrevistas, eles ficavam felizes porque podiam entrar na nossa barraca, sentar e comer alguma coisa. Nós cuidamos deles um pouco, por baixo dos panos. Não podíamos fazer isso sempre porque colocaríamos tudo a perder, não podíamos intervir tanto, mas tentamos ser legais com eles, pelo menos.

 

E eles foram legais com vocês?

No começo nós ficamos com medo porque só havia homens e tínhamos que dormir na mata, sem segurança alguma. Mas, sim, eles foram muito gentis e amigáveis. Se você os conhecesse fora do acampamento, não imaginaria o quão racistas são.

 

Na sua opinião, por que o acampamento existe?

Esse tipo de acampamento existe na África do Sul porque há muita violência. É fácil alguém tomar a palavra e dizer que são os negros que causam os males ao país e que é preciso se defender deles. O coronel dizia o tempo todo que os negros roubavam, matavam, que eram biologicamente menos inteligentes e que por isso, era preciso evitá-los. Os meninos acreditavam em tudo o que o coronel dizia porque eles vivem a violência. Um deles tinha apenas 15 anos e já havia matado quatro pessoas sendo que uma delas estuprou sua mãe e sua irmã. Se uma coisa dessas acontece com você, você reage sem pensar.

 

O quão importante você acha que é fazer multimídias, documentários, reportagens sobre racismo e xenofobia?

É importante, sim, mas por outro lado é preciso tomar cuidado para não fazer o problema maior do que realmente é. É claro que existem racismo e xenofobia na África do Sul, mas grupos como o do acampamento são bem pequenos. Tão importante quanto a mídia retratar o racismo na África do Sul é fazer um balanço, mostrar o dia-a-dia do país, a vida real longe desses grupos extremistas.