Crédito: acervo pessoal

Crédito: acervo pessoal

Eu era um daqueles garotos que, no colégio, ficavam vidrados nas aulas de biologia sobre parasitas — você deve se lembrar mais ou menos das amebas, dos vermes que se apoderavam do intestino, do barbeiro disseminando Chagas pelas casas de pau a pique, não? Pois é, só que meu interesse em ciências, com raríssimas exceções, parava por aí. A escola que me perdoe, mas nunca me empolguei calculando probabilidade em cruzamentos genéticos, decorando as funções das organelas celulares ou resolvendo exercícios de química orgânica. Bom, se é para aproveitar a confissão, devo dizer que matemática e física mais me inspiraram aflições do que indagações lógico-filosóficas. Quanto às escolhas de leitura (e creio que elas ajudem a traçar melhor o perfil do aluno), evitava a ficção científica… era do time da literatura fantástica, com cenário medieval, por favor.

Muito bem. Então eu fui fazer jornalismo.

Na faculdade, como era de se esperar, segui perambulando pelas humanidades. Até que, na virada para o último ano, pintou uma vaga de estágio em uma revista dedicada à divulgação científica, medicina e estilo de vida. Também era uma oportunidade de entrar na Editora Abril. Pensei: vamos nessa… se eu passar, pelo menos ali é o lugar ideal para explorar (jornalisticamente!) o mundo mágico dos parasitas, invisíveis ou não. Acabei escolhido para integrar a redação da revista SAÚDE e, a partir desse momento, fui tragado por um universo bem mais complexo e divertido do que eu imaginava: o corpo humano. Se já se especulou, apesar da controvérsia toda, que o acaso tem lá sua parcela de culpa na evolução da espécie, que dirá na sorte de um indivíduo? Foi aí que eu comecei a redescobrir as ciências.

Queda e ascensão em uma redação

Difícil não recorrer ao chavão “cair de paraquedas” quando um novato no jornalismo de saúde ganha suas primeiras pautas. Primeiro porque a disciplina (jornalismo/divulgação científica) não é contemplada pelas grades curriculares das faculdades; segundo porque a interação de biologia, química e física na fisiologia humana é mais complicada do que sonham as vãs pretensões de um repórter iniciante. Estreei na revista com uma pauta da pesada: câncer de pênis. Sim, a doença existe e merecia ser mais explicada e divulgada. E lá fui eu atrás de urologistas e até virologistas, porque o vírus do HPV está envolvido em alguns casos. Acho que, de fato, estava trabalhando no lugar certo.

Do sistema reprodutor, por assim dizer, migrei para o cérebro, visitei o trato digestivo de cabo a rabo, passeei pelo sangue, fui apresentado a hormônios, citocinas, grupos celulares… e até com o DNA eu topei. A cada nota ou reportagem, in loco ou por telefone, assistia (e ouvia) pequenas e extensas aulas sobre o organismo, doenças, exames e tratamentos. E, com o suporte e as lições dos colegas de redação, tomava consciência da importância que é traduzir conhecimento científico para o leigo (me lembro da diretora questionando: “acha que sua avó vai entender essa passagem, Diogo?”) e inspirar as pessoas a se cuidarem. Porque esse jornalismo de saúde vai realmente muito além de parasitas, órgãos e enfermidades: passa pelas dúvidas, angústias e aspirações da mente humana.

Pseudomédico?

Diogo Sponchiato recebendo o prêmio Bayer de Jornalismo de 2013 pela reportagem Vida Longa à Sua Vista - Revista SAÚDE | Crédito: acervo pessoal

Diogo Sponchiato recebendo o prêmio Bayer de Jornalismo de 2013 pela reportagem Vida Longa à Sua Vista – Revista SAÚDE | Crédito: acervo pessoal

Perdi a conta de por quantos laboratórios, consultórios, hospitais e congressos científicos caminhei. E o que agita o sangue e os neurônios é que, a cada pauta, sempre há algo a aprender. Às vezes escondido em um detalhe, como um receptor perdido em certa célula. Outras tantas numa notícia de impacto direto no seu cardápio: e não é que o churrasco eleva mesmo a concentração de substâncias cancerígenas na carne vermelha? Perdão pelo momento estraga-prazeres.

O jornalismo de saúde desafia repórter e editor periodicamente a rever conceitos (porque a própria ciência é dinâmica), reinventar maneiras de aguçar a curiosidade do leitor e manter pé firme em meio ao cabo de guerra puxado, de um lado pela compreensão do leigo, do outro pela precisão da informação técnica. Ontem foi nutrição, hoje é atividade física, amanhã é o novo medicamento contra o Alzheimer.

Verdade que parasitas microscópicos continuaram me perseguindo. Cobri a gripe suína de 2009, sempre com um pote de álcool em gel à mão. Fui investigar como o HIV subjuga nosso exército imunológico, por que as bactérias ficam resistentes, de que forma um vírus como o HPV abre alas a tumores… E veja só: os dois Prêmios Abril de Jornalismo (2010/11) que faturei se devem a reportagens protagonizadas por infecções — gripe e AIDS, no caso. Aprendi até a ler (com limitações, é claro) artigo científico e, de tanta conversa com especialistas, já arrisco explicações sobre epigenética — se você pensava que genética era complicada, meu amigo, não sabe o que é isso aqui —, resistência à insulina, processos alérgicos… Chega o dia em que um antigo colega de escola brinca: pô, daqui a pouco você vira médico! Serve de estímulo, mas não é para tanto: prefiro continuar contando boas histórias e tentando decifrar para o leitor o que ele pode fazer para deixar a orquestra do seu corpo em sintonia.

Sigo por aqui?

Mas a cabeça do jornalista aloja, vez ou outra, um micro-organismo que sopra dilemas ao ouvido: especializar-se ou não? No meu caso, esse bicho me mordeu e, apesar dos anos de apreço pelo jornalismo saudável, me vi numa encruzilhada: sigo no caminho da segmentação (ciência e saúde) ou mudo de rota? Surgiu a oportunidade de trabalhar em outra revista, a Galileu, na Editora Globo. Outra senhora escola aquela redação, que me proporcionou explorar mais cultura e literatura — quem diria, mas estou quase virando a casaca para o time da ficção científica — e outros ramos da ciência, da psicologia à geofísica. Tocava numa boa minhas pautas quando, um ano depois, a bifurcação reapareceu no horizonte e recebi um convite de voltar à revista SAÚDE. E o parasita reincidiu ecoando à minha orelha o velho dilema. Meditei, meditei e decidi vestir de vez a camisa do jornalismo de saúde. Acho que não havia tratamento melhor.

Somados mais de sete anos na área, hoje não hesito em dizer a qualquer foca que se especializar é uma estrada e tanto. Há uns meses tive que responder a uma pesquisa de assessoria de imprensa, que me pedia para definir o jornalista de saúde. Arrisquei com o seguinte: é um construtor de ponte entre o leigo e o cientista, que decodifica informação técnica com impacto na vida e no bem-estar do cidadão, de modo a torná-lo mais consciente de seus hábitos e escolhas, sem cair na paranoia de uma busca obsessiva por saúde. É uma missão instigante… e espero ter muito tempo pela frente para confirmá-la, revê-la ou atualizá-la.

Antes disso, porém, vou à próxima reunião de pauta defender (de novo!) que precisamos fazer uma reportagem sobre Chagas e outras doenças negligenciadas. Afinal, um bando de parasitas continua aprontando por aí.
Diogo Sponchiato é jornalista e formou-se na turma de 2007. Foi repórter da revista SAÚDE (Ed. Abril), editor da revista GALILEU (Ed. Globo) e, de volta à Abril, hoje é editor da revista SAÚDE e da Biblioteca SAÚDE.