Há 50 anos iniciava-se um período de hiato no cinema brasileiro. Não, não se fala aqui somente sobre o declínio do Cinema Novo e de seus filmes que foram asfixiados pela ditadura, mas também da produção do diretor Eduardo Coutinho.
Aqueles que já tiveram a oportunidade de assistir Cabra Marcado Para Morrer (1984), sabem que o objeto central do documentário é a história de um filme que não deu certo. Em primeiro de abril de 1964, a tropa do Exército ocupou o engenho Galileia, no munícipio de Vitória do Santo Antão, em Pernambuco, para acabar com as filmagens da ficção sobre a vida e a morte do líder camponês João Pedro Teixeira. A operação militar obteve sucesso e os únicos materiais que restaram do primeiro Cabra Marcado Para Morrer foram alguns rolos de gravação que a equipe de Eduardo Coutinho havia acabado de enviar para o Rio de Janeiro.
O cineasta jamais desistiu desta história durante o período que não pôde filmá-la. Depois de longa espera, finalmente em 1979, com a Lei da Anistia e a abertura política do presidente Figueiredo, ele conseguiu reformular a ideia do filme e começar o documentário que o colocou à frente do cinema nacional. Era a hora de retratar e reviver a memória do movimento camponês em Vitória do Santo Antão.
Na semana dos 50 anos do golpe militar, a Faculdade Cásper Líbero não se esqueceu desse marco em nosso cinema, reproduzindo o filme na sala Aloysio Biondi e promovendo um debate com o professor Ninho Moraes, que dentre suas diversas atividades também é cineasta e documentarista. Infelizmente, para a maioria do corpo discente da faculdade e felizmente para os quatro alunos que conseguiram reservar sua tarde para o evento, o debate ganhou um tom intimista. Ninho Moraes e sua humildade reuniram os presentes para formar um conversa horizontal na sala.
O professor girou em torno de como o trabalho de Eduardo Coutinho havia se transformado durante o longo hiato de Cabra Marcado Para Morrer, para ele o primeiro Cabra era de péssima qualidade. Faz sentido, já que o projeto original era uma ficção em preto e branco, sem gravação de áudio simultânea, composta por “atores” locais mal preparados e um Coutinho muito cru.
A questão que Ninho Moraes mais enfatizou é que o cineasta foi muito influenciado pelas reportagens que fazia no Globo Repórter. Trabalhando lá, ele desenvolveu uma habilidade de abordagem muito particular. A câmera e Coutinho muitas vezes chegavam juntos, as suas histórias eram narradas por ele e pelas lentes, mas é claro que esse modelo só se concretizou graças à capacidade de improviso do diretor.
Tal discussão durante a sessão de Cabra Marcado Para Morrer fez com que o debate com Ninho Moraes passasse um pouco pela polêmica da linha tênue entre o documental e o real. Porém, não demorou muito para Moraes reestabelecer o cerne da conversa lembrando que o documentarista João Moreira Salles era uma espécie de mecenas do Coutinho. Salles dava a oportunidade para o diretor de Cabra Marcado Para Morrer trabalhar da forma que mais gostava, ou seja, com um plano definido pela sua própria abordagem, com liberdade.
O diálogo na sala Aloysio Biondi percorreu algumas das obras que o cineasta conseguiu aplicar sua forma original de fazer cinema. Concluiu-se que nas vezes em que havia uma encomenda, ele não obtinha sucesso, à exemplo de um documentário sobre a escravidão no Brasil realizado logo em seguida de Cabra Marcado Para Morrer, que não emplacou. Por outro lado, Edifício Master (2002) é um dos vários exemplos que podem ser dados para demonstrar sua genialidade.
O compromisso que Eduardo Coutinho teve com a ruptura deste filme em 1964 foi a razão de seu triunfo 20 anos depois. O tempo foi necessário para a construção de um artista experiente, que já dominava as regras da improvisação, mas não de improviso. Como um músico de jazz espera pelas luzes da plateia se apagarem para surpreendê-la, Coutinho esperava pelas luzes de sua câmera acenderem.