Dona de um riso fácil e de simpatia contagiante, Martha Pimenta é a entrevistada dos sonhos. A conversa em uma tarde de domingo rendeu horas. Graduada em História pela Universidade de São Paulo (USP), lecionou por alguns anos na rede pública até se engajar no ramo da educação, em especial no âmbito social. Trabalha até hoje na universidade na qual estudou, espaço onde experienciou momentos importantes para sua formação como profissional e cidadã.
Carla Bridi – Para começar, conte um pouco de como se iniciou sua relação com a USP.
Martha Pimenta – Bom, entrei na USP em 1977, que é um ano emblemático por conta do retorno do movimento estudantil. Foi um momento político muito efervescente no país, pois este ainda se encontrava em plena ditadura, e eu era muito nova. Tinha 17 anos, então estava um pouco crua, no sentido de formação política. Tive um lucro nisso, além do curso ser interessante, teve esse momento histórico que foi muito importante. Acho que aprendi muito por participar bastante, não foi algo que acontecia e não percebia. Eu era integrante do centro acadêmico.
CB – Então você estava ativa?
MP – Não muito, eu era bem medrosa, meu pai se encarregou de me assustar. Ele tinha motivos, meu avô foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
CB – Sério? Qual era o nome do seu avô?
MP – João Jorge da Costa Pimenta. Então, o meu pai, que tinha muito mais consciência da ditadura do que eu, me dizia para tomar cuidado porque, caso levantassem minha árvore genealógica, iria ser difícil me explicar. Então eu tinha noção política em casa, não era completamente ingênua, mas eu tinha 17 anos.
CB – E como era transmitida essa noção política para você?
MP – Bom, meu avô era operário gráfico sindicalista, era anarquista. Na família da minha mãe também tive influências, ela tinha uma prima que morreu torturada, eu acompanhei um pouco dessa história… Meu pai me explicava a censura no jornal, os versos de Os Lusíadas ao invés de notícias. Em casa sempre fomos estimulados a formular opinião, a falar o que pensávamos. Eu devia ter mais noção do que o resto das crianças.
CB – Aproveitando o tema político, você já teve interesse em seguir carreira política?
MP – Não. Mesmo sendo engajada, não.
CB – Mas você se interessa por questões políticas…
MP – Sim, me interesso muito, sou uma pessoa política, discuto, mas ao mesmo tempo nunca vi a política como um lugar onde eu quisesse estar profissionalmente. Nunca tive disposição de competição, não me fascina. Gosto muito da discussão política e da participação militante.
CB – E como você chegou a ter um cargo na USP?
MP – Bom, eu gosto de ter emprego fixo com a garantia de salário no fim do mês. Nasci para ser assalariada. Comecei a dar aula em 1983 e em 1985 prestei concurso estadual e passei, comecei a dar aula na rede pública. Porém, minha carga horária era pesada e o salário estava ruim. Nessa época (1995), estava com três filhos pequenos, e me preocupava que o nível das minhas aulas estava decaindo por causa disso. Não conseguia mais me dedicar como antes. Então, surgiu a oportunidade de trabalhar com um projeto na USP, sem ser um cargo fixo. Precisavam de alguém que conhecesse a rede pública de ensino. O salário era bem maior do que o que eu ganhava e a carga horária bem menor. Trabalhei nove meses no projeto e então surgiu uma vaga fixa no departamento no qual eu trabalhava. Fui aprovada no processo seletivo e ingressei como educadora na USP.
CB – Qual projeto era esse?
MP – Esse projeto inicial se chamava USP Serviços de Educação. Era um levantamento dos serviços existentes na universidade que seriam interessantes para as escolas de primeiro e segundo grau. Era um projeto muito instigante porque a USP tem muita coisa que pode ser usada por professores e pela sociedade em geral que não era divulgada. Então eu fiz um primeiro catálogo sobre esses serviços. Quando fui contratada, fiz um segundo catálogo chamado “USP frente ao desafio da inclusão social”, que ampliava o levantamento de serviços para avaliar o que a Universidade tinha para atender pessoas de fora dela com deficiências fisícas, minorias discriminadas, etc.
CB – E quanto a um de seus projetos mais importantes, o Programa Avizinhar?
MP – Ele surge em 1998 como um projeto institucional da USP. A proposta era fazer a interlocução da universidade com as comunidades no seu entorno, abrir o olhar para elas e incluí-las. Acho o nome do projeto muito feliz para a proposta: “avizinhar”, propor uma politica de vizinhança inclusiva e respeitosa, com o reconhecimento de que a universidade também precisa desse conhecimento externo. Comecei a trabalhar no Avizinhar com o Avizinhar Escola, ou seja, proporcionar esse olhar externo às escolas públicas no entorno: quais escolas eram essas, como elas enxergavam a USP, como elas aproveitavam a universidade, o que gostariam de demandar dela… O foco do projeto no início era para crianças e adolescentes, especialmente aqueles que frequentavam o campus da cidade universitária. O Avizinhar Escola vai ser um complemento na atuação de educadores sociais na aproximação com essas crianças.
CB – Mas essas crianças podiam frequentar o campus e realizar atividades lá?
MP – Na verdade, essas crianças e adolescentes estavam brincando no campus. Inicialmente, no imaginário da USP, era algo parecido com Capitães da Areia (risos). Achavam que eles estavam soltos, assaltavam… Uma das falas correntes é de que eles estariam “munidos de laranjas”, o que é um absurdo, já que munição remete a armas. Então foram contratados educadores sociais que foram realizar o levantamento correto sobre essas crianças. Descobriu-se então que era um número muito menor de crianças do que se imaginava; as laranjas eram as sobremesas do restaurante da USP que os alunos davam às crianças; muitos estavam matriculados na escola, mas não frequentavam-na; todos eram moradores da São Remo, que é uma favela praticamente dentro do campus, já que seu terreno é originalmente da universidade. Eram, na sua totalidade, meninos.
Os educadores foram se aproximando desses meninos até alcançarem suas famílias, para assim analisar a situação do porquê eles se encontravam no campus, na procura de atendê-los melhor. Descobriu-se também que vários deles estavam inscritos em muitas atividades, como aulas de circo, violão e capoeira em horários de aula coincidentes, impossibilitando que eles se organizassem e frequentassem todos. Cada projeto também não tinha o controle de acompanhar cada aluno, de descobrir o motivo de ele não estar frequentando as aulas.
CB – Mas esses projetos eram ministrados pela USP?
MP – Não obrigatoriamente. Muitas iniciativas eram de professores da USP que aproveitavam apenas o espaço da universidade para dar aulas, sem cobrar por elas. O problema é que todos eles estavam desarticulados, não havia comunicação entre eles, possibilitando que apenas um aluno se inscrevesse em vários cursos para não frequentá-los. A minha função nesse projeto foi aproximar esse entorno institucional desarticulado, criar uma rede entre as atividades.
CB – Então, mas pelo que eu entendi, o Avizinhar só trabalhava com crianças e adolescentes. Não havia nada no projeto direcionado aos pais?
MP – O Avizinhar, no início, não tinha programa de geração de renda e colocação profissional. Porém, uma das primeiras verificações foi que em breve esses adolescentes teriam que ingressar no mercado de trabalho, ou havia um irmão mais velho que deveria estar inserido no mercado, mas não estava. Outro agravante era a idade de ingresso no serviço militar, que os impossibilitava de obter um trabalho formal. Assim, eram movidos a realizar um trabalho informal, que na maioria das vezes não é legal.
CB – E qual foi a solução encontrada?
MP – Bom, era o ano de 1999 e o ramo da informática era novidade. Havia um programa do governo federal chamado Capacitação Solidária, que patrocinava cursos de formação profissional. O Avizinhar começou a oferecer cursos de informática em parceria com a Escola Politécnica da USP, onde se aprendia a consertar computadores. O único requisito era estar na escola. Eu arranjava vagas para eles nas escolas públicas da região e acompanhava a frequência. O curso era longo, por volta de um ano, e colocava-os no estágio. Aqueles que não conseguiam vagas em empresas acabaram virando professores do curso de informática, cobravam pelas aulas (nada muito caro) e recebiam salário.
CB – O Programa Avizinhar pode ser facilmente associado a trabalho voluntário. Os colaboradores do projeto eram voluntários?
MP – Não, muito pelo contrário. Todos eram funcionários da USP. Não é simples administrar trabalho voluntário. Eu, pessoalmente, acreditava firmemente que era preciso funcionários qualificados, com clareza no que estavam fazendo. Voluntário sem orientação é um perigo, pois ele vai com a melhor das intenções e acha que está fazendo certo quando, na verdade, não está. Não é para aliviar a consciência, mas, sim, ter comprometimento. A ideia não é um programa de ajuda, pelo contrário: a experiência de trabalhar com esses meninos enriquece, e muito, a experiência do estudante voluntário da faculdade. Extensão universitária não é algo que a universidade faça para os outros: é uma oportunidade que a universidade e os universitários têm de saber qual é a função deles no mundo. Senão, formaremos profissionais que não têm noção do mundo e que trabalham para o bem-estar pessoal. O Avizinhar era um programa de extensão que, simultaneamente, cumpria o papel social e disponibilizava a universidade para a sociedade, abrindo portas para que esta demandasse da universidade o que ela precisava. Não é ensinar certo e errado, mas, sim, oferecer oportunidades.
CB – O Avizinhar ainda existe?
MP – Não, acabou em 2006.
CB – Por quê? Algo deu errado?
MP – Então, o programa ficava em uma coordenadoria ligada diretamente à reitoria. Na mudança do reitor em 2006, a nova reitora acabou com essa coordenadoria. Não sei, existem acusações de que na coordenadoria existia uma liberdade muito grande de uso de recursos, e por conta disso houve desvio de verbas. Como não trabalhava na parte financeira, não posso afirmar e nem negar. O que posso afirmar com toda a certeza é que o Avizinhar, que eu fui coordenadora durante cinco anos, nunca desviou um centavo.
CB – E de onde vinha esse dinheiro?
MP – Vinha de recursos da própria universidade, orçamento fixo, e de parcerias. Houve um curso em que os alunos fizeram oficina de jornalismo com a Reuters que a própria agência bancava. Enfim, essa acusação nunca foi explícita. Acredito que nós tinhamos displicência com a burocracia, pois estávamos muito envolvidos com os projetos, o que poderia ter facilitado para acabar com o programa. Uma nova coordenadoria foi criada realizando contato com grandes empresas e o lado social foi posto de lado.
CB – Ao ler o documento de criação do Projeto Avizinhar, me chamou a atenção a frase que dizia que o foco do projeto não era estabelecer relações de clientelismo com o público atendido. Eu gostaria de saber qual é a sua opinião a respeito dos programas de auxílio do governo. Você acha que se estabelece essa relação?
MP – Eu acho que eles são necessários. Nós temos um olhar focado em São Paulo e temos uma visão restrita de como esses programas agem no resto do país. Sem dúvida nenhuma, famílias foram tiradas da extrema pobreza e restituiu-se nelas alguma dignidade. O que pode se discutir é o acompanhamento feito a essas famílias. Acho que ele é variável, às vezes é mal administrado. O dinheiro pode ser federal, mas a administração é municipal. Se não houver relações boas entre as instâncias, haverá desvio e clientelismo. A transferência de renda é uma medida próvisória. Já que os serviços públicos não funcionam da maneira como devem funcionar, é preciso um suporte. Não se divulga, mas muitas famílias que melhoram de vida acabam sendo retiradas desses benefícios, já que não precisam mais.
CB – E você não acredita que as pessoas possam se acomodar com tais benefícios?
MP – Não, não tem como. É muito pouco dinheiro, não é algo que enriqueça, mas sim algo que oferece o mínimo de condição para buscar outras oportunidades. Outra questão que faz diferença é que faz com que as crianças frequentem a escola, e se a família não estiver atenta, irá perder os benefícios. A escola também tem que se atentar com a frequência.
CB – E a escola está atenta?
MP – Muito pouco. O estado não olha quase nada. A educação pública estadual é lastimável. O que o governo do PSDB fez com a educação pública desse estado foi vergonhoso. Não sou de criticar abertamente um partido ou o outro, mas isso eu falo com toda a certeza, pois acompanhei a educação pública durante 20 anos.
CB – E quanto à São Remo, existem outros projetos relacionados a ela agora?
MP – Existem vários, pois a comunidade está muito próxima da USP, então é muito conveniente aplicá-los. Eu acho que a São Remo demanda coisas da universidade que deveriam ser demandadas à prefeitura. A comunidade enxerga a universidade e a prefeitura da universidade como a responsável por solucionar os problemas.
CB – Atualmente, qual é a sua função na USP?
MP – Estou envolvida em um projeto novo de universidade corporativa. Se chama Escola USP. Deverá cuidar da formação dos funcionários da universidade, que são 21 mil. Fora da universidade, faço parte da Rede Butantã e do Fórum da Criança e do Adolescente Butantã (FOCA – BT).