Beatriz: O que você fazia antes de ser taxista? Qual faculdade fez e que curso?
Márcio: Antes de ser taxista, sempre trabalhei na área de informática. Foram 11 anos no Grupo Financeiro Lojicred – que não existe mais – e 26 anos no Banco Itaú. No Itaú, trabalhei sempre na área de sistemas: entrei como analista júnior e sai como analista de projetos sênior (neste último cargo, realizava planejamento e acompanhamento de projetos). Minha graduação foi feita na ESAN (Escola Superior de Administração de Negócios), e depois fiz pós-graduação em computação e internet (UFRJ) e gestão de projetos (FIAP-MBA). Também fiz especialização em gestão de informática, na FGV.
B: Quais motivos o levaram a mudar radicalmente de vida depois do antigo emprego?
M: Como comecei a trabalhar com 15 anos, me aposentei pelo INSS com 50, uma idade jovem para parar de trabalhar – além do salário do INSS ser muito abaixo do que ganhava no banco. Comecei a pensar o que fazer quando realmente saísse do Itaú ou da minha área de analista. Abrir um negócio é a primeira ideia de qualquer pessoa, ser seu próprio patrão. Mas o risco é muito alto para quem não tem esse tipo de experiência, podendo “queimar” uma poupança acumulada ao longo de muitos anos. Também não queria ter algo que me fizesse trabalhar aos finais de semana, coisa que eu sempre fazia. De tanto pegar táxi na Radio Taxi, que atende o Banco Itaú, fui conversando, conhecendo esse tipo de trabalho, e vi como uma boa alternativa para um complemento de aposentadoria. Guardei esse “plano B”, para pô-lo em prática ao atingir meus 55 anos e até fiz, em março de 2013, o CONDUTAX (curso que me habilitava a ser taxista), mas o banco me desligou em junho de 2013, quando eu tinha 51 anos. Fui demitido por ter um salário mais alto do que o resto da equipe, por estar aposentado pelo INSS e ter mais de 50 anos. Confesso que a demissão me deixou muito decepcionado, frustrado, com raiva, menosprezado, traído e injustiçado. Isso faz parte do luto da perda, mas temos que “sacudir a poeira” e seguir em frente.
B: Cogitou outros empregos antes de se decidir pelo táxi? Por que escolheu virar taxista?
M: Logo após a demissão, não pensei em acionar o “plano B”. ‘Sou novo, boa formação, recém-certificado pelo PMI… Vou para o mercado buscar uma recolocação’, pensei. Cheguei a fazer várias entrevistas, em algumas sentia que dariam certo, mas não vinha uma resposta positiva. Creio que a idade estava pesando. Tive algumas propostas para trabalhar como pessoa jurídica (PJ), mas não aceitei. No início de 2014, fui indicado por uma amiga para um emprego numa consultoria, em Alphaville, também para ser PJ. Era tudo o que havia recusado antes, mas pensei que poderia ser esse o caminho. Fiz a entrevista e acertamos a forma de trabalho.
Depois, me passaram um projeto complicado, bem diferente do que tinha sido combinado na entrevista. A pressão foi tamanha que pedi as contas no quarto dia de trabalho. Sem contar que demorava 2h30 para voltar para casa. Enfim, percebi que havia me cansado de tudo isso e resolvi transformar o “plano B” em “A”.
Quando eu nasci, meu pai era taxista, mas isso foi só um detalhe na escolha. Eu pensava em ser um taxista diferenciado, aproveitando minha formação, falar inglês.
Agora, no táxi, eu sou o meu chefe, decido meu horário, defino quanto quero ganhar (o que está relacionado à quantidade de horas que trabalho), conheço pessoas novas, troco ideias e, se a corrida é ruim ou chata, é como um projeto ruim que tocava no banco: não via a hora de acabar, só que, no táxi, isso acaba em minutos, e não em meses. Hoje, curto a possibilidade de conhecer lugares e bairros que não conhecia, vejo a cidade com outros olhos e não existem dois dias iguais. Além de que, como o táxi é um complemento de renda, eu não me sinto pressionado a ganhar “X” de dinheiro.
B: Seus familiares e amigos o apoiaram na sua decisão?
M: Minha esposa e minhas filhas sempre me apoiaram, principalmente depois que eu expliquei as vantagens de ser um taxista. Os amigos também curtiram a ideia, mas senti em algumas pessoas certo preconceito, do tipo “mas você vai ser um taxista?!?”
B: Como era a sua rotina antiga? E a nova?
M: Minha rotina antiga era muito comum: como morava a 5 quilômetros do trabalho, saía de casa às 8 horas e chegava em 20 minutos. Gostava do que fazia, mas, às vezes, assumíamos projetos problemáticos que tiravam a minha paz. Também trazia trabalho para casa, respondia e-mails nos finais de semana e era acionado de madrugada para resolver alguma coisa. A nova rotina ainda não está consolidada, pois ainda não me acertei com horários fixos. Comecei saindo de casa às 6h30, mas senti que sair um pouco mais tarde me gerava corridas próximas da minha casa. Tenho conseguido montar uma carteira de clientes com corridas agendadas, o que altera os horários do dia. Meu táxi tem um ponto no Bom Retiro, mas não gostei do movimento dele. É fraco, porque fica meio escondido. Por isso, prefiro circular e explorar bem os aplicativos de celular, que têm me gerado boas corridas – também trabalho com máquina de cartão de débito/crédito, que agrega mais corridas.
Estou definindo uma meta financeira por dia, e quando atinjo a meta já posso parar de correr ou, se não atingi, posso me planejar para recuperar nos dias seguintes.
B: Como foram os primeiros dias dirigindo, após passar anos fazendo um serviço completamente
diferente? Qual a sensação?
M: Meus primeiros dias foram terríveis, ficava muito nervoso por não saber para onde iria com o próximo passageiro. Perdia o sono, acordava às 3 da manhã e não dormia mais, só pensando no táxi – e isso foi por mais de um mês. Cheguei até a procurar acupunturista! O problema é que sempre trabalhei com coisas planejadas, e no táxi não existe planejamento nenhum, você não sabe como será o seu dia. Além disso, é difícil saber rapidamente qual o melhor caminho para chegar ao destino do passageiro. Com o tempo, a gente vai pegando o jeito: pergunta para o cliente, GPS e outros recursos. Tudo era novidade! Também conheci um senhor do ponto, com 74 anos, que me deu muitas dicas. Sou muito grato a ele.
Fui da sensação de ansiedade para liberdade: poder andar para todos os cantos, parar em uma praça, em um parque para tomar água, comer alguma coisa… Isso é muito bom.
B: Qual a sua parte favorita do trabalho novo?
M: Gosto de conversar com as pessoas – quando é possível -, 90% dos passageiros gostam de conversar. Também gosto de conhecer novos lugares, trocar ideias com outros taxistas e montar estratégias para conquistar novos clientes. É bom ver que os esforços para agradar os passageiros são percebidos e reconhecidos. Coloco em prática tudo que aprendi na minha vida profissional dentro do táxi.
B: Dizem que taxistas são quase psicólogos, por ouvirem muitas histórias todos os dias. Isso é verdade? Qual a melhor história que já ouviu e que mais mexeu com você?
M: Meu táxi já serviu muitas vezes de divã. A maioria são pessoas muito bravas com seu trabalho e sua rotina. Quando conto a minha história, elas riem e dizem que vão pensar em virar taxistas. Recentemente, fui abordado por uma jovem boliviana, mãe do pequeno Ivo. Ela disse que precisava ir a um local, mas só tinha R$15,00 – perguntou se eu poderia levá-la por esse dinheiro. No caminho, ela disse que o local era para tentar obter a bolsa família para os dois filhos, pois estava passando necessidade. Procuro sempre ter uma postura positiva, para não derrubar mais ainda a pessoa. Temos sempre que pensar pelo lado bom, para tornar a vida mais leve.
B: Você passa por “perrengues” e situações engraçadas durante as corridas?
M: Muitas. Quase todos os dias tenho coisas engraçadas ou complicadas. A mais bizarra foi um coreano que não sabia dizer ao certo para onde ia, dizia “Plaça” Silva Teles (que não existe). Seguindo o GPS, rumo a Rua Silva Teles, entrei na Marginal Tietê. Como não era o caminho que o passageiro estava acostumado a fazer, abriu a porta com o carro em movimento, na Marginal, e começou a gritar que eu estava dando muita volta e queria a polícia. Depois de acalmá-lo e dizer que não precisava pagar, chegamos ao destino, ele pagou e ainda me deu caixinha! Também peguei uma corrida pelo aplicativo, e uma mulher me ligou perguntando se levava um cachorrinho. Eu disse que sim e, no dia seguinte, vi que o carpete do carro estava forrado de pelo de cachorro. Sorte que o banco é de couro!
B: Você tem uma página no facebook, a “Márcio TaxiDriver”. Conte um pouco sobre o que você posta nela. As pessoas costumam gostar, participar e comentar?
M: Eu resolvi compartilhar essa minha transição usando uma página no facebook, colocando situações e histórias de corridas. Desde o início, muitos amigos me escreveram e adoraram a ideia, pedem para que eu continue contando as histórias. Pretendo colocar outros conteúdos, como cenas da cidade, eventos que irão acontecer nela, dicas, e abrir espaço para que outras pessoas contem suas experiências engraçadas em táxis em qualquer lugar do mundo. As pessoas costumam comentar e curtir os posts e, além de o “face” ser, também, uma estratégia de divulgação do meu trabalho, é uma forma de quebrar a barreira para que as pessoas me chamem para uma corrida. Apesar disso, eu acho que alguns amigos podem se sentir constrangidos de me ter como taxista. Mais uma vez, preconceito.
B: Nas suas corridas, às vezes você escolhe alguém para fazer uma Corrida Premiada. Como ela funciona e como você escolhe alguém para ganhá-la?
M: Desde que comecei a trabalhar, percebi que algumas pessoas pegam taxi por não ter outra opção de transporte: por deficiência, idade avançada, problemas de saúde, falta de transporte público próximo – e sempre me sensibilizei por isso. Até que, um dia, peguei uma senhorinha que nem conseguia subir no carro. Ela precisava ir ao banco, para renovar a senha da aposentadoria. Aí nasceu a Corrida Premiada: ela vai acontecer sempre que meu coração sentir que a pessoa precisa de ajuda.
B: Qual a maior lição que você tirou dessa experiência?
M: Na verdade, é um conjunto de lições. Aprendi que não importa o que você faça, precisa fazer com alegria, voltar para casa feliz com o trabalho realizado. Precisa se amar e se sentir satisfeito, entender que somos seres humanos, que podemos ser qualquer coisa que Deus ache que é melhor para nós. Hoje posso ser médico, amanhã, cozinheiro, depois engenheiro, taxista, analista, porteiro… A única coisa que não muda é o meu eu. Já peguei passageiros muito arrogantes, que se achavam muito superiores ao taxista. No silêncio, penso que ele um dia vai aprender que somos todos humanos em evolução. Descobri, também, que é maravilhoso aprender coisas novas depois dos 50, se redescobrir. E, como um amigo disse, “Márcio, te deram um limão e você fez uma limonada”. Me vejo assim mesmo, virei a página do Banco Itaú e me desapeguei do passado.Quando temos um problema, podemos ficar tristes, chorar, ter raiva. Porque sentimentos fazem parte da nossa essência. Mas precisamos, depois de um tempo, levantar a cabeça e seguir em frente com objetivo e determinação.