Quem tem a oportunidade de conhecer e conversar com o ator, dramaturgo, arte-professor e pai Leonardo Cortez não duvida do seu amor pela arte. Entusiasmado e visivelmente apaixonado pelo que faz, Léo, que está atualmente em cartaz com a peça Maldito Benefício, de sua autoria, conseguiu um tempo para falar, com riqueza de detalhes, sobre o início da carreira, as dificuldades que enfrentou na profissão e os planos para o futuro.
Antes mesmo de completar sua quarta década de vida, o ator demonstra enorme sabedoria ao descrever a arte como ferramenta capaz de promover reflexões necessárias na sociedade e ao questionar a dramaturgia feita nas telenovelas. Ele conta, numa conversa descontraída, como a arte se tornou responsável pela manutenção de sua “saúde mental”.
Quando surgiu seu interesse pela dramaturgia? Existiu algum fato ou pessoa específicos que o influenciaram?
Minha formação é de ator, e antes de escrever meu primeiro texto eu tive a oportunidade de participar de muitas montagens. Viver de maneira intensa a experiência de intérprete me impregnou de traquejos que me ajudam a construir uma boa carpintaria teatral. Os autores que me influenciaram foram, portanto, aqueles com quem eu tive a oportunidade de encenar no meu processo de formação no teatro: Guarnieri, Vianinha, Dias Gomes e, claro, Nelson Rodrigues. “Bonitinha, mas Ordinária” é a bússola daquilo que eu busco nas minhas peças…
E o que você busca?
Contundência dramática, humor negro e denúncia a reboque.
A sua família aceitou bem essa escolha? Conte como foi esse processo.
Minha família tem muitos artistas e, portanto, não foi novidade que mais um se interessasse por essa área, mas tive problemas com a minha mãe. Ela alimentava a forte esperança que eu fosse jornalista, principalmente depois que eu passei no vestibular da Cásper Líbero, em 1994. No entanto, uma semana depois, saiu o resultado da USP com a minha aprovação em Artes Cênicas na ECA. Foi um choque grande pra minha mãe, e isso acabou gerando uma boa crise entre nós dois. Anos depois ela me pediu desculpas e hoje é a minha maior fã.
A gente sabe que a carreira de artista no Brasil costuma ser difícil, principalmente no início. Você encontrou muitas dificuldades no caminho para chegar onde está hoje? De que forma conseguiu contorná-las?
O início me parece mais fácil porque as expectativas ainda não são concretas e tudo o que vier é lucro, sabe? Minha primeira peça, por exemplo, eu fiz num teatro precário numa temporada de meio de semana. Mas eu estava no começo de carreira e não me importava com nada, a não ser estar em cena e fazer teatro. Hoje em dia as coisas são mais complexas. Eu continuo sentindo a necessidade imperativa de criar e estar em cena, mas não posso mais me submeter a qualquer coisa, porque sou pai de família, tenho contas a pagar etc. Além disso, eu não tinha a cobrança e a exigência que eu tenho comigo mesmo nos dias de hoje. Estar no palco é resultado de muito mais pesquisa, estudo e empenho do que quando comecei e isso, obviamente, resulta em trabalhos melhores e dos quais eu me orgulho muito mais. Quando penso no começo da minha carreira, me parece que naquela época tudo era mais fácil.
Quanto à sua pergunta sobre como contornar as dificuldades, eu te digo que ao longo da minha carreira eu me apoiei na polivalência. Sou ator, mas também dramaturgo, diretor e professor. Afortunadamente, gosto de todas essas ramificações do fazer teatral, de modo que estou sempre trabalhando, o que contribui de maneira decisiva para a minha saúde mental.
Em algum momento passou pela sua cabeça trabalhar com algo que não fosse o teatro?
Sempre penso, em épocas de “vacas magras”, que eu poderia estar fazendo outra coisa, mas o devaneio não progride porque simplesmente não me vejo em outro lugar onde sou tão pleno e feliz como no teatro. Mas na adolescência eu fui um desenhista compulsivo e cheguei a mandar alguns trabalhos pra editoras. Desisti quando percebi que a solidão do desenhista iria contribuir de maneira salutar para o desenvolvimento das minhas neuroses.
Qual você acha que é o papel social do ator, isto é, como você acha que ele pode influenciar tanto negativa como positivamente na sociedade?
Eu sempre falo pros meus alunos que o exercício do ator é o da extrema generosidade. Cabe ao ator a devoção ao seu ofício na busca do melhor da sua interpretação. Quando o ator consegue transportar o público para outra realidade, estando a serviço de um discurso elaborado por um autor que se preocupa em usar a arte como instrumento de melhoria da vida do ser humano, então, nesse momento, ele cumpre a sua dificílima função social. Da mesma maneira, essa mesma energia empregada em produtos que contribuem para a manutenção de preconceitos, estereótipos e discursos infames pode fazer do ator um grande vilão na vida real. Infelizmente é o que vemos muitas vezes na televisão. A televisão é o inferno do ator porque se trata de um veículo a serviço da publicidade, do dinheiro e da massificação.
Existe algum personagem que você sonha em interpretar?
Estou há muitos anos interpretando personagens que eu mesmo escrevo, então acredito que seria muito saudável para o meu exercício de ator entrar no universo de um autor que eu admiro.
Qual, por exemplo?
Tenho uma grande vontade de fazer Shakespeare porque conviver com o texto dele é a oportunidade de adquirir sabedoria. Nelson Rodrigues sempre é uma experiência sensacional. Fiz o Werneck em Bonitinha, Mas Ordinária na época da faculdade e adoraria fazer de novo, agora que estou mais velho e mais tarimbado. Mas se você quer um exemplo pontual, te cito o Mobius, da peça Os Físicos, de F. Durrenmatt.
E algum que você não faria de jeito nenhum?
Se a dramaturgia é boa, ele necessariamente oferece bons papéis aos interpretes. Aliás, essa é a uma das minhas preocupações primordiais na hora de escrever um texto: proporcionar bons papéis aos atores que irão encená-lo. Agora, quando a dramaturgia é medíocre e o papel está a serviço de um discurso nocivo, preconceituoso e desvinculado das intenções mais nobres da arte, o trabalho deve ser recusado com contundência e sem arrependimento.
Além de atuar, você também escreve algumas peças, como é o caso da “Rua do Medo”, que eu tive o prazer de assistir, e “Maldito Beneficio”, que está em cartaz agora. De onde vem essa inspiração toda? Como é esse processo de criar os personagens, o contexto em que eles vivem etc.?
A inspiração é fruto da indignação com aquilo que eu observo e da necessidade de transformar isso em objeto de reflexão através da arte.
Em Rua do Medo o que me moveu foi a percepção de que a indústria da segurança pública se interessa diretamente na disseminação da paranoia da classe média. A partir disso, construí personagens que eram representativos de diferentes grupos sociais para um embate entre quatro paredes que fosse representativo de uma sociedade adoecida pelo medo.
Em Maldito Benefício, o ponto de partida foi uma história ocorrida na minha família, que se desenvolveu a ponto do texto abordar também o universo de sonhos desfeitos da classe média baixa brasileira. Enfim, são várias as possibilidades de inspiração, e vários os motivos para se sentir paralisado, o mundo está cada vez mais complexo…
Das metas que você tinha quando começou a atuar, quais você já conseguiu atingir?
Aos trancos e barrancos, eu vivo de teatro, ou pelo menos da criação e da arte. Isso me parece uma grande vitória em tempos onde as pessoas precisam estar cada vez mais “enquadradas” se quiserem alcançar algum tipo de estabilidade.
Como ator, eu tive a oportunidade de fazer um leque imenso de coisas: dramas e comédias no teatro, teatro de pesquisa e teatro comercial, programas de televisão, novelas, jornalísticos, comerciais etc. Foi uma experiência vastíssima que me deixa animado a continuar nesse caminho. Muito embora diversas coisas eu não queira mais fazer.
Que coisas são essas?
Como publicidade ou personagens insípidos na televisão, por exemplo.
Pra terminar, em meio a todas essas realizações, tem algo que você ainda sonha em realizar profissionalmente?
No momento, o que mais me parece importante é escrever mais uma peça de teatro. Um texto que se comunique diretamente com a plateia, com humor e contundência crítica, cheia de personagens carismáticos e convincentes.
Depois disso, quero atuar nesse texto, como tenho feito ao longo desses últimos anos na minha trajetória de homem de teatro, na companhia de grandes atores e da Glaucia (Libertini, esposa de Léo). Ao mesmo tempo, é preciso conseguir empreender tudo isso com recursos e profissionalismo.
O desafio do artista moderno é não se vender e ao mesmo tempo conseguir ganhar dinheiro. Então esse é o sonho: poder fazer o que eu acredito, ganhando o suficiente para sustentar a minha família. Parece simples, mas é a coisa mais complexa do mundo nos dias de hoje.