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Às portas da década de 2020, as crenças incrustadas na sociedade estão sendo constantemente questionadas por movimentos sociais, como os feministas e de igualdade de gênero. No entanto, mesmo com todos os avanços recentes, certos costumes conseguem se manter inabaláveis, como, por exemplo, o da mulher assumir o sobrenome do marido após o casamento.

Essa prática surgiu durante a Idade Média com o objetivo de organizar a união entre os casais e de servir como indicativo de impedimento matrimonial, ou seja, ela facilitava a identificação das mulheres solteiras e casadas. Assim, inicialmente, a utilização do sobrenome do marido não tinha a intenção de afirmar a dominação do masculino sobre o feminino, mas de organizar o ambiente social.

Herança portuguesa

Em 12 de setembro de 1564, foram aplicadas em Portugal as disposições relacionadas ao Conselho de Trento, por meio das quais as autoridades sacerdotais passavam a gerenciar o direito de família, exercendo a Igreja Católica então amplo domínio sobre qualquer documentação, dos registros de nascimento às certidões de óbito. A pesquisadora Fabiana Giacometti afirma que “somente os matrimônios efetivados no seio da igreja cristã eram reconhecidos como válidos no que dizia respeito aos direitos de herança e legitimação de filhos”. Tal prática criou, naturalmente, dificuldades para aqueles que professavam religiões diversas da católica.

Quase três séculos após a implementação das normas associadas ao Conselho de Trento, entrou em vigor a Lei n. 1.114, de 11 de setembro de 1861, que atribuiu efeito civil a qualquer união religiosa que não fosse de cunho católico. No entanto, preceitos como “bons costumes” e “ordem pública” não poderiam ser contrariados. Foi somente com a Proclamação da República que ocorreu a ruptura entre a Igreja e o Estado. Como consequência, foi proferido o Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, que instituía o casamento civil como a única forma válida de matrimônio perante o governo e as autoridades.

O Código Civil de 1916

Alguns anos após o fim da jurisdição eclesiástica, entrou em vigor o Código Civil de 1916, que tornou obrigatório o uso do sobrenome do marido pela mulher com a justificativa – também adotada na Idade Média – da identificação do núcleo familiar. No entanto, para a lei, a mulher era considerada incapaz, cabendo ao marido não somente o papel de representar a família frente ao Estado, como também de ser o responsável pela gestão dos bens pertencentes à esposa e ao casal. Social e legalmente, o homem era o chefe de família e detentor do poder, sendo de sua competência a decisão, inclusive, de escolher a profissão de sua companheira.

Ao adotar o sobrenome do homem com quem iria se casar, a mulher deixava de pertencer à família de seu pai e passava à esfera da responsabilidade exclusiva do marido. A sociedade patriarcal fornecia ao homem o controle, inclusive, sobre os filhos do casal. Afinal, o sobrenome e a identificação familiar eram transmitidos pelo pai. Apesar de gestar seus filhos, quem dava à luz civilmente era o pai, pois o nascimento perante a sociedade só era possível por meio do reconhecimento paterno de seus descendentes.

Até que o divórcio nos separe

Quase cinquenta anos depois da entrada em vigor do Código Civil de 1916, foi promulgada a Lei n. 4.121/62, também conhecida como Estatuto da Mulher, que não só tornou facultativo o uso do sobrenome do marido, como também aboliu a incapacidade civil da mulher. Apesar do uso do cognome ser prerrogativa exclusiva da esposa, muitas mulheres não sabiam ou não haviam sido corretamente informadas a respeito de seus direitos. Além disso, por pressão social, muitas escolhiam continuar usando a alcunha.

Indissolúvel ou irreversível, o casamento era um caminho sem volta. No entanto, a perspectiva de “até que a morte os separe”, defendida pela Igreja Católica, foi desmantelada com a chegada da Lei n. 6.515/77, a Lei do Divórcio. A partir dela, tornou-se possível que uma mulher se divorciasse. Entretanto, o ato trazia consequências, constituindo uma delas a perda do direito de uso do sobrenome do marido.

Após 11 anos da entrada em vigor da legislação divorcista, veio a Constituição Federal de 1988, que decretou o fim da visão da mulher como incapaz e instituiu a igualdade entre as pessoas e direitos como o da personalidade. Foi este o primeiro influxo rumo à mudança que se firmou com a chegada do Código Civil de 2002.

A perda do sobrenome em razão do divórcio deixou então de existir e, usando como premissa o direito da personalidade, o 2º parágrafo do artigo n. 1.571 permitiu “a manutenção do nome de casado”. Além disso, mais um passo rumo a igualdade de gênero foi dado quando se reconheceu a possibilidade de o marido assumir o sobrenome da esposa.

Do machismo ao romantismo

De acordo com dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen-SP), o ano de 2017 registrou um número recorde de mulheres que optaram por não aderir ao nome de casada. Elas representam aproximadamente um terço das que contraíram matrimônio naquele ano.

Muitas mulheres, ainda hoje, aderem aos nomes dos maridos como forma de agradar a seus parceiros ou como um ato de romantismo. No entanto, manter o sobrenome de solteira é mais do que o exercício de um direito, é a manutenção da identidade social.