INSCRIÇÕES ABERTAS PARA O VESTIBULAR DE VERÃO 2025 Fechar

logo_arruaça

Edição nº 4 – Janeiro de 2016

 

Arruaça-Entrevista-Marcelle Sansão-foto

Suzana Amaral | Foto: Marcelle Sansão

Com oitenta e poucos anos idade, quase 50 deles como cineasta e mãe de nove filhos, Suzana Amaral parece ser aquele tipo de “mulher maravilha”, que se desdobra para dar conta da casa, do trabalho e da família. Mas a entrevista com ela é uma surpresa. Prima distante da pintora Tarsila do Amaral – que não falava sua idade –Suzana diz logo que uma artista não revela quantos anos tem e que não quer reconhecimento por ser mais velha ou mulher. Conta também que nunca foi mãe devotada e que os filhos sempre se viraram. No currículo, traz mais de 50 documentários e três longas-metragens. O mais conhecido e reconhecido é A hora da estrela (1985), uma “transmutação” – como ela mesma classifica – do romance homônimo de Clarice Lispector. O filme recebeu 23 prêmios nacionais e internacionais. Suzana escolheu a literatura como combustível da carreira e fez outros dois longas: Uma vida em segredo (2001), da obra do escritor Autran Dourado, e Hotel Atlântico (2009), baseado no livro de João Gilberto Noll. Com um jeito informal e revelando sua personalidade forte, falou à revista Arruaça sobre trabalho e vida pessoal. Comentou também o rótulo de dona de casa que virou cineasta, que recebeu por ter ingressado no curso de Cinema, na USP, após os 35 anos e já com os nove filhos. Fez questão de trazer à tona os problemas do cinema nacional e mostrou preocupação com o futuro da cultura no Brasil.

 

ARRUAÇA – O que a impulsionou, já com nove filhos e mais de 35 anos, a estudar cinema?
Suzana Amaral – É que eu sempre gostei e gosto muito de cinema. Então, quando abriu o curso na USP, eu falei: “Vou fazer!”. Sou da segunda turma que a ECA formou. Eu entrei em 1968, um ano bem turbulento. Estava no auge da ditadura e eu participei bem ativamente desse movimento revolucionário estudantil. Foi naquele tempo das passeatas e tudo isso. Eu fiz o curso, mas foi como qualquer um por aí. Ninguém aprende cinema estudando só aqui no Brasil. Por isso, fui para os Estados Unidos e fiquei quase quatro anos lá.

 

Em 1986, logo após Marcela Cartaxo (que interpretou Macabéa em A hora da estrela) receber o Urso de Prata no Festival de Berlim, você começou a ser chamada, mundo afora, de dona de casa que virou cineasta. Essa fama a incomoda?
Do jeito que falavam, parecia que eu estava posta em sossego na minha cozinha quando, de repente, tive uma ideia e fiz um filme. Não era assim. Quando eu fiz A hora da estrela, eu já tinha feito a ECA e voltado de estudar nos Estados Unidos. Eu fui pra lá em 1975 e voltei em 1979. Só fiz o filme em 1985. Então foi bem distante. Mas essas coisas não me incomodam não. Me incomoda é não ter dinheiro pra fazer um filme atrás do outro.

 

E você tem esse lado dona de casa?
Não tenho. Eu sou bem revoltada e transgressora até hoje.

 

Por que só três longas-metragens em tantos anos de carreira?
Porque faltou dinheiro. Faltou apoio e grana. Por exemplo, agora eu estou com o projeto de um longa baseado no livro do Rubem Fonseca, O Caso Morel. Estou com uma produtora maravilhosa, que é a segunda maior de São Paulo, e que hoje foi para o Rio de Janeiro se encontrar com um fundo setorial pra captar, se possível, o primeiro dinheiro do meu longa. Então ainda não tem nem previsão de início de gravações, nada disso. Com o primeiro aporte, pode ser que facilite. Mas a situação econômica está tão complicada, né? Você vê, depois de A hora da estrela, eu demorei mais de 10 anos pra poder fazer outro filme. Eu tive projetos, mas não achava dinheiro. Tive quatro anos de trabalho de captação pra fazer o meu terceiro longa, Hotel Atlântico. E levou quatro anos pra captar três milhões, que não é muito dinheiro em cinema.

 

Essa dificuldade se deve ao fato de serem filmes baseados em obras literárias e não sobre assuntos mais populares, na sua opinião
Não. É falta de interesse do Governo mesmo, dos órgãos como a Embrafilme, a Ancine, seja qual for, de facilitar ou, pelo menos, ajudar e incentivar os diretores que demonstram que têm capacidade pra fazer bons filmes, entendeu? Independente do tema ou de eu ser mulher, isso eu acho bobagem. É falta de uma política governamental. Porque em todos os países do mundo – na Argentina, por exemplo – existe apoio e estímulo para os bons diretores, existe uma crença grande na capacidade das pessoas de começar e acabar um projeto.

 

Já chegou a colocar dinheiro do seu bolso nos filmes?
Nunca. Não. Isso a gente não faz. Eu não faço. Até nos Estados Unidos a gente aprende: “Não coloque o seu dinheiro pra fazer filme”. É recomendação, todo mundo falava isso.

 

Você tem um trabalho preferido?
Tenho, o Hotel Atlântico. Eu gosto mais dele que do A hora da estrela. Porque é um filme mais “conseguido”, é maior, mais arrojado, ousado. Eu estava mais madura, cinematograficamente falando, então todo trabalho é de uma qualidade muito grande. A hora da estrela é legal, agrada muita gente porque tem emoção, mas não é a mesma coisa. Hotel Atlântico é um filme de gente grande, é um cinema melhor, de maior qualidade. Aqui no Brasil ele não foi bem entendido, mas no exterior foi muito reconhecido. Era um filme que eu passava e havia debate, as pessoas perguntavam. Pela narrativa cinematográfica, mas não comercialmente.

 

Falando de A hora da estrela, por que escolher Clarice Lispector, considerada uma autora tão complexa?
Porque era um desafio fazer um livro tão difícil. O mesmo no caso dos meus outros filmes. Era desafiador fazer um livro da Clarice Lispector, também do João Gilberto Noll, ou do Autran Dourado. Os roteiros são todos meus, eu que faço todas as adaptações. Esse último, O caso Morel, é que eu fiz junto com a Patrícia Melo. Os outros são só meus. Mas a escolha de A hora da estrela foi mais ou menos por acaso também. Quando eu estava nos Estados Unidos, os meus professores diziam assim: “Nunca escolha um livro que tenha muitas páginas, porque é muito mais difícil de você trabalhar em cima”. E lá na biblioteca da Universidade de Nova Iorque a parte da literatura brasileira é boa, muito forte. Então eu ia escolhendo os livros com o dedo e procurava o mais fininho, sabe? A hora da estrela foi o mais fininho que eu achei. Quando tirei que vi que era da Clarice. Pra mim ela era hermética, mas não foi difícil, foi trabalhoso. Mas tudo dá trabalho, né?

 

Você diz que não adapta um livro para o cinema, mas “transmuta”. Como é esse processo de “transmutação”?
Quando você adapta, está apenas adaptando, a palavra já diz. Agora, na transmutação eu me coloco também, é uma mistura. É o livro mais eu mesma. Eu o leio e me incluo na transcrição de uma coisa pra outra, então ele muda devido à minha entrada. Tem cenas que não existem no livro e eu fiz acontecer, que eram coisas da minha vida pessoal. É uma incorporação de mim com o autor do livro.

 

Toda vez que a história de um livro é retratada no cinema, existem espectadores que acham que o filme não foi fiel à obra. Você já recebeu críticas desse tipo? O que acha desse ponto de vista?
Não recebi. Tem gente que diz o contrário, que o meu filme é melhor do que o livro. Mas eu não ligo. Eu faço o que eu gosto e o que eu quero, entendeu? Não estou aqui pra agradar a um público, e sim pra fazer aquilo que eu acho que precisa ser feito. Eu não faço concessão. No que eu creio, é aquilo que eu vou colocar.

 

Por que a temática do protagonismo da mulher – como no caso da Biela, de Uma vida em segredo, e da Macabéa, de A hora da estrela – é tão presente nos seus trabalhos?
É claro. Porque, se eu sou homem, eu vou ter um olhar masculino em cima da realidade. Agora, como mulher, eu vejo o mundo como eu sou. Em nenhum momento me passou pela cabeça se os meus trabalhos são coisa de mulher ou não. Eu só sou fiel a mim mesma.

 

Como é seu trabalho atual como professora universitária?
Eu só dou aula de cinema, na FAAP. Como eu não posso fazer, eu falo sobre. Claro que eu gostaria de estar fazendo filmes, a gente sente falta. Quando eu filmo, eu entro em órbita, estou no meu lugar. Você toda hora tem que tomar decisões criativas e isso é muito bom. Eu sou muito apaixonada pelo que eu faço, então, no momento de criação, eu fico feito um peixinho, que quando está na água não quer parar de nadar. É o que eu mais gosto de fazer na vida. E dirigir automóvel, eu também adoro. Mas, enquanto não dá, a gente vai tentando, né?

 

Você pensa em parar?
Não penso. Eu gosto de fazer as coisas, entendeu? Quem para é poste. Eu não paro não. Estou sempre me procurando, correndo atrás de alguma coisa. Você tem que ter constância.

 

Como você vê o futuro do cinema nacional?
É complicado, viu? Eu vejo um vácuo, um vazio muito grande. Ou eles estimulam e tratam de elevar as pessoas, facilitar para as elas o fazer cinematográfico, ou então vai todo mundo morrer na praia. Quem é que está fazendo cinema no Brasil? A Anna Muylaert fez agora o Que horas ela volta?, mas há quanto tempo não saia um filme brasileiro? Sai muita comédia, mas aí é uma produção espúria, com filmes muito irrelevantes. Não são convidados pra festival nenhum. O governo brasileiro até inscreve, às vezes, algum pro Oscar, mas chega lá e não tem expressividade nenhuma. Não tem uma política em relação ao cinema, não existe interesse governamental em cultura, e isso vai tolher, vai impedir, vai diminuir o interesse das novas gerações em relação a esse mercado. Todos os meus alunos querem fazer cinema, mas não tem nenhum organismo que aceite inscrições, faça algum projeto, abra uma concorrência. As pessoas não se sentem estimuladas a participar. Elas se formam e o máximo que vão fazer é direção em publicidade. Isso pra quem tem interesse. Porque é preciso ganhar dinheiro, trabalhar. Agora, se tivesse um organismo como a Ancine, como tinha também a Embrafilme, que fosse bem atuante com uma política de apoio ao cinema, apareceriam projetos. Eu seria a primeira a pegar o meu projeto, colocar embaixo do braço e andar pelas produtoras. Sem isso, como é que vai ser? O produtor vai ter que andar com o pires na mão e ir no Bradesco, no Itaú, cada um dá um pouquinho, e vai juntando. Os produtores também não têm muito interesse em ficar perdendo tempo desse jeito. Não é o fato de ser mulher ou ser homem. Também não tem homem por aí querendo fazer cinema. Por quê? Porque é barra. E isso é ruim porque o lado cultural foi desaparecendo, se desmoralizou. A sociedade como um todo também é culpada porque se satisfaz com pouco. É falta de cultura mesmo, porque o cinema é uma manifestação cultural da maior importância. Se existe um Ministério da Cultura, era pra ele ser atuante. Deveria estar se preocupando com a cultura no país. É preciso haver uma movimentação maior nessa direção porque a cultura determina a história e a manutenção de uma civilização. Tem que fazer muita arruaça mesmo por isso (risos).