O mercado visto pelo expert
Jornalista especializado em quadrinhos, Paulo Ramos é professor na Universidade Federal de São Paulo, faz parte do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP e já escreveu livros sobre o assunto. Em entrevista à Arruaça, ele explora como a onda de adaptações literárias está afetando o mercado.
ARRUAÇA – Nos últimos anos, as editoras passaram a investir fortemente em adaptações literárias em quadrinhos. Em paralelo, programas de incentivo à cultura começaram a dar maior atenção às HQs. Acha correto afirmar que o aquecimento desse nicho se deve a esses incentivos?
Paulo Ramos – Pode-se dizer, com toda a segurança, que o aumento de adaptações literárias em quadrinhos visto a partir de 2006 tem relação direta com programas governamentais de compras de acervos. Digo isso baseado em dois dados. O primeiro está ancorado no PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), mantido pelo governo federal. Esse programa passou a incluir quadrinhos a partir de 2006. O edital explicita um claro interesse em quadrinhos, em particular nos que adaptem clássicos literários. Esse item do edital foi lido pelo mercado editorial como a deixa para investir em adaptações. O número de adaptações existentes passou de pares para dezenas nos dois anos seguintes. Note que, neste ano, como ainda não saiu a lista de compras do PNBE do ano passado, percebe-se uma clara redução no volume de adaptações. Não é coincidência.
Ainda que as editoras estejam publicando mais quadrinhos nacionais, por outro lado a variedade de gênero sofreu com esse foco dado às adaptações literárias. Alguns criadores reclamam que os trabalhos para editoras se resumem a essas adaptações, conseguindo lançar material diferenciado somente de maneira independente. Como estudioso do mercado, acredita que existe mesmo essa divisão entre grandes editoras e independentes?
Há uma diferença entre editoras que publicam quadrinhos tradicionalmente e as que apostam no segmento apenas como um negócio. É desse último quadro que estão incluídas muitas das editoras que apostam nas adaptações. Elas tendem a ver nos quadrinhos e na versão dos clássicos apenas um bom negócio. Publica-se apenas para vender ao governo.
Sendo professor, você já usou materiais adquiridos pelo governo em sala de aula ou presenciou o uso destes? Se sim, como observa o envolvimento dos alunos com as HQs?
Já usei quadrinhos em sala de aula, sim. Cheguei até a ministrar uma disciplina sobre uso dos quadrinhos no ensino no curso de Letras da Universidade Federal de São Paulo, onde trabalho. Nesse curso, uma das aulas foi discutir a política de compra desses materiais, de modo a permitir um uso crítico deles junto aos alunos.
Acredita que essas versões em quadrinhos facilitam a aceitação por parte de jovens leitores, que normalmente têm dificuldades em entender os clássicos da literatura brasileira?
Creio que os quadrinhos em si sejam uma porta de entrada para o mundo da leitura, mas não necessariamente as adaptações. No meu entender, é esse aspecto que o governo reluta a aceitar. Como está, há a leitura de que os quadrinhos devam ser uma ponte, uma ferramenta para que o aluno chegue à “boa” leitura, ou seja, à literária.
A situação vista pelo autor
Will começou a publicar quadrinhos em 2004 no fanzine Subterrâneo. De lá para cá, lançou diversas revistas independentes e colaborou também com coletivos, participando de projetos como MSP+50 e Mônica’s. Pela Editora Nemo desenhou as adaptações de 20.000 léguas submarinas e os dois volumes de As aventuras do Capitão Nemo. Ganhador de quatro Troféus HQMIX (dois em 2007, e os demais em 2012 e 2013), Will revela em entrevista exclusiva à Arruaça seu ponto de vista sobre as adaptações literárias.
ARRUAÇA – Tendo lançado diversos títulos independentes e trabalhado também com adaptações literárias pela Editora Nemo, como você enxerga esse mercado de adaptações atual?
Will – Acredito que atualmente estamos vendo menos adaptações do que quando essa vertente se iniciou, mais ou menos em 2005. Ainda existem autores trabalhando com essa modalidade, porém, se a retração nas compras governamentais via PNBE se mantiver, creio que veremos menos lançamentos daqui pra frente.
Alguns autores reclamam que o investimento quase exclusivo em adaptações por boa parte das editoras “engessou” a criatividade, criando uma situação onde existem mais oportunidades para os quadrinistas, mas apenas para aqueles que se submetem a esse gênero. Você concorda com essa afirmação?
Penso que se o autor usa a palavra criatividade reconhecendo-a como um atributo que possui, não devia ficar preocupado, pois acho que dá pra criar mesmo numa adaptação literária. É claro que não vai poder fugir muito do original pois aí deixaria de ser uma adaptação para se tornar uma versão, paródia, etc… Ninguém está obrigando nenhum autor a fazer nada, vai quem quer, o que chamamos de mercado tem um leque bem aberto de possibilidades hoje em dia. Não vejo tantas editoras assim investindo só em adaptações.
Houve muita interferência editorial nas adaptações em que trabalhou?
Na minha experiência não teve, ou melhor eu não encarei como interferência, fui contratado para fazer um trabalho e fiz, é relacionamento cliente/profissional. Creio que se o autor é quem tem a ideia, quer ter domínio total sobre a obra criada, sabe que não aceitará interferências, deve publicá-la de forma independente e não procurar uma editora, pois em algum aspecto ele vai ter que acatar o que for proposto. Ou, antes de aceitar alguma proposta de alguma editora ele deve saber quais são as bases e o que realmente se espera dele. É tudo uma questão de combinar direito. Meu relacionamento com editora, por ora, está limitado a apenas uma. Com a Nemo foi tudo tranquilo.