Ao norte, estende-se um vale relvoso. Nele corre um ribeirão que corta o caminho pela frente. Nota-se, virando a cabeça no sentido das horas, uma ladeira mal calçada que se perde no mato. Do outro lado do vale passa um bonde de tração animal. Eles são obsoletos. Os bondes elétricos funcionam desde o ano passado. Aqueles, puxados por cavalos, ainda são usados em ruas como a que dá para ver, de terra batida. Também do lado de lá, há umas casas grandes e pequenas. Especialmente uma bem pequena, feita de taipa, chama a atenção. Porta de madeira, janelinha. Construída há uns cinquenta anos, talvez. Ao lado dela fica uma boa horta, onde colhem-se verduras frescas. Olhando diretamente ao sul, ribeirão acima, percebe-se um tanque de água. Aves diversas sobrevoam alto. Uma mula refresca-se por ali. Completando a volta, lembramos que nas últimas chuvas quase toda a encosta veio abaixo, especialmente esta parte, agora à nossa esquerda. Onde acabam de construir esta estrutura diferente, curiosa, única na nossa cidade.
Trata-se do muro de revestimento na travessa da Assembléia, atualmente chamada de praça dos Artesãos Calabreses, uma construção de 250 metros de extensão por dez metros de altura máxima, contratada pela Prefeitura Municipal em 5 de setembro de 1908, por 17 contos, 349.420 reis. Na época, a rota da rua da Assembléia já era utilizada por tropas de mulas que cruzavam a Chácara do Barão de Limeira, entre o Largo da Liberdade e o Caminho de Santo Amaro, no atual Bairro do Bexiga. Atravessar o Ribeirão do Anhangabaú naquele ponto, onde hoje está o viaduto Dr. Manuel José Chaves sobre a avenida 23 de Maio (conhecido como Ferradura), evitava a passagem pela região central da cidade.
Para dar suporte ao lado oeste da rota, que a partir de um mesmo ponto se dividia verticalmente até um desnível de doze metros, bem como para possibilitar a utilização dos terrenos ao longo da parte baixa da rua da Assembléia, foi necessária a construção do que o Engenheiro Antônio Carlos de Vasconcelos, em seu livro ‟Pontes Brasileiras, viadutos e passarelas notáveis”, chamou de ponte de meia encosta. Pedras eram um item escasso naquele local e época. O material utilizado para a obra foram tijolos de sílica trazidos da Itália, mais resistentes e muito diferentes dos tijolos de argila, mesmo estes pouco disponíveis na São Paulo do início do século XX.
O aspecto final da construção, fruto de técnica desenvolvida pelos capomastri (mestres-de-obra) italianos da região da Calábria que se estabeleceram no Bairro do Bexiga, não encontra paralelo na cidade. Estes imigrantes, de fato, foram os inventores da utilização de tijolos de sílica ou de barro cozido como base para construção civil, isto em uma São Paulo onde quase todas as casas eram feitas com taipa de pilão. O professor Benedito Lima de Toledo, da FAU-USP, costuma chamar a capital de palimpsesto, ‟a cidade reconstruída sempre sobre o mesmo sítio”. Ele explica que ‟depois da São Paulo das casas de taipa, ao que um viajante inglês chamou de mud city, sucedeu a de tijolo, pelas contruções que se beneficiaram da presença dos mestres estrangeiros, notadamente dos italianos e, em seguida, a cidade do concreto armado”. Para ele, ‟os Arcos constituem documento vivo da técnica de tijolo”. As arcadas para a sustentação da encosta e fixação de um tabuleiro para suporte de parte da pista de rolamento da rua Jandaia são, de fato, diferentes, curiosas, únicas.
A região e, por consequência, o próprio caminho, se desenvolveu. A importante ligação entre as ruas Jaceguai (atual Radial Leste-Oeste) e Asdrúbal do Nascimento recebeu um calçamento de pedras em 1920. A chamada parte alta da rua da Assembléia, ganhou o nome de rua Jandaia em 1929.
No ano de 1931 aparece o mais antigo registro de uma construção no local e, a partir dela, o de diversos outros prédios, de até cinco pavimentos, com a particularidade de fazerem frente tanto para a parte baixa (rua da Assembléia) como para a parte alta (rua Jandaia), com entradas autônomas. Estes grandes sobrados, em três blocos separados, foram erguidos ao longo dos anos e inteiramente apoiados sobre a estrutura de tijolos. Em nenhum momento os arcos ficaram inteiramente ocultos, mas a visão de unidade da obra desapareceu. No interior das residências eles também continuavam aparentes e chegaram a ser utilizados como dispensas. Vistos do lado de fora, pareciam algum tipo de ligação entre um e outro conjunto.
Com o plano de criação das grandes avenidas, em especial a construção da avenida 23 de Maio entre 1967 e 1969 e da radial Leste-Oeste em 1972, estes casarões foram desapropriados, com a finalidade de demolição e abertura de uma alça de acesso entre elas. O atraso na demolição, depois do processo de desapropriação e saída dos antigos proprietários dos seus imóveis, permitiu a ocupação dos casarões por diversas famílias, que passaram a viver ali com relativo conforto.
No ano de 1987, o então prefeito Jânio Quadros deu andamento ao antigo plano de construção da alça de ligação, mas não sem se deparar com um duplo problema: social e arquitetônico. De um lado, diversas vozes se opuseram à retirada das famílias que haviam ocupado os antigos sobrados bem como à intenção da prefeitura de enviá-las para o distante bairro de Campo Limpo. De outro, a preservação das construções, enquanto representativas de um momento histórico da cidade, foi defendida por diversos arquitetos e urbanistas.
Em meio a uma série de contingências políticas, a Prefeitura Municipal conseguiu a autorização judicial para a desocupação e demolição das construções, o que foi realizado simultaneamente. De fato, enquanto o entulho de alguns blocos demolidos vinha sendo retirado, outras casas ainda permaneciam ocupadas, aguardando a execução das ordens de despejo compulsório.
Uma vez finalizado o processo de demolição, a visão de conjunto e toda a grandiosidade da meia ponte voltou a aparecer. Diante dela, a prefeitura modificou seus planos, remodelando a alça anteriormente projetada e restituindo o aspecto original dos arcos, dos tijolos e refazendo o parapeito na antiga parte alta, tudo sob os cuidados do professor niteroiense João Batista Teixeira, que já havia trabalhado no monumento da Independência no parque do Ipiranga, entre outros em São Paulo. Com o restauro, vieram nova iluminação e uma grade verde para impedir que o local fosse alvo de vandalismos.
Em 2002 os Arcos receberam sua primeira distinção formal, de direito, como monumento da história da cidade. Foram reconhecidos como Patrimônio Histórico do Município, recebendo o estatuto legal de um bem tombado.
Entretanto, com o passar do tempo, apesar das grades que os isolavam da rua, eles vieram sofrendo algumas depredações. Por conta disso, em 2012, foi assinado um protocolo de intenções pela Prefeitura Municipal com o setor privado. Dentro de um programa chamado Suvinil Cor, Arquitetura & Memória, que pregava por meio da utilização de cores, valorizar e proporcionar beleza para importantes áreas da cidade e levar melhor qualidade de vida para os paulistanos, a meia ponte foi selecionada para receber uma demão de tinta. No ano seguinte, os tijolos italianos de sílica apareceram pintados da cor salmão e os vãos, de bege.
Recentemente, no início de 2015, provocado pelo programa da atual Prefeitura Municipal de fomento e incentivo à arte urbana através do grafite, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CONPRESP, mediante consulta ao Departamento do Patrimônio Histórico – PDH, aprovou uma nova intervenção nos vãos dos arcos. Escolhidos por uma curadoria formada entre grafiteiros, foram elaborados 20 paineis, dos mais variados temas, todos à escolha dos próprios autores e sem a participação de qualquer órgão público ou do Conselho.
O caráter efêmero, que é próprio da intervenção pelo grafite, fundamentou a exceção legal ao impedimento da intervenção no bem tombado. De fato, apesar da proibição expressa em lei, que veda qualquer modificação das características originais em um patrimônio histórico, o Conselho apontou a possibilidade de se autorizar a pintura dos vãos, uma vez que ela não é definitiva. Mais uma vez, os Arcos dos artesãos calabreses se tornaram o centro de discussões acaloradas sobre qual a melhor maneira de se tratar o local e mesmo a causa para uma Ação Popular contra o CONPRESP.
Questões envolvendo o conceito de efêmero pretendido pelo legislador do patrimônio histórico; se os grafites agridem a unidade estética de toda a construção, defendida pela legislação específica, ou constituem uma forma de síntese entre o antigo e o novo; qual a qualificação daqueles que levaram a efeito os grafites nos vãos dos arcos; em se tratando de obra pública, se a população teria sido consultada, entre outras, surgem das vozes de nomes importantes da Arquitetura e Urbanismo paulista.
São todas questões dinâmicas, que recebem respostas diversas, marcadas pela irredutível subjetividade do gosto. E eles, os Arcos, parecem observar, com serenidade e solidez, a evolução da cidade à sua volta.
Ao norte, estendem-se as estruturas viárias, em vários níveis. Nelas, correm veículos que cortam o caminho pela frente. Nota-se, virando a cabeça no sentido das horas, há uma ladeira de concreto que desemboca num cruzamento com várias outras. Do outro lado das estruturas passa um carro a gasolina. Eles são obsoletos. Os carros elétricos funcionam desde o século passado. Aqueles, impulsionados por motor a combustão, ainda são usados em ruas como a que dá para ver, de asfalto antigo. Também do lado de lá, há umas torres grandes e pequenas. Especialmente uma muito grande, feita de aço, chama a atenção. Porta de vidro, espelhos que armazenam energia solar. Construída há uns cinquenta anos, talvez. Ao lado dela fica uma das hortas-industriais-verticais onde produz-se verduras hidropônicas. Olhando diretamente ao sul, avenidas acima, percebe-se um respiro de canalizações. Naves diversas sobrevoam alto. Um gato de rua refugia-se por ali. Completando a volta, lembramos que nas últimas chuvas quase o sistema de reaproveitamento de água não comporta a vazão e se rompe, menos esta parte, agora à nossa esquerda. Onde, faz 200 anos, construíram esta estrutura diferente, curiosa, única na nossa cidade.
O parágrafo de abertura é uma adaptação livre de descrições da São Paulo do final século XIX, contidas em cartas e no livro Macário, de Álvares de Azevedo.
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