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Edição nº 7 – 2018

As gotas de chuva caem feito agulhas na noite de sexta-feira. Sem dúvida, uma péssima escolha sair de casa com esse tempo. Do lado de fora da casa de shows, no centro da cidade de São Paulo, um grupo de homens fuma seus cigarros e gargalha alto. Ao lado, uma pequena fila de homens e mulheres se forma para entrar na festa. Eles aproveitam para terminar as garrafas de cerveja e os copos de plástico com algum drink caseiro. É possível ouvir as batidas de pop e funk que tocam nas caixas de som do lado de dentro.

Na porta, uma figura feminina recebe os convidados e sinaliza para uma segunda fila no interior da boate. Alta e com um longo cabelo vermelho vivo, ela veste um macacão incrustado de pedrarias e pérolas do pescoço aos pés. E botas de salto 15 centímetros igualmente adornadas. A maquiagem é forte. Nos lábios, um tom de vinho escuro e nos olhos, um jogo de sombras minuciosamente calculado. Longos cílios postiços batem a cada vez que ela pisca. Ela sorri e encena dois beijos nas bochechas de cada um na fila, sem de fato tocá-las. E comunica: “Bem-vindos à Priscilla.”

Priscilla é uma das festas drag queen da noite LGBT da cidade de São Paulo. Famosa por ser uma das pioneiras com atrações internacionais e ex-participantes do programa RuPaul’s Drag Race, ela também serve como passarela para drag queens nacionais divulgarem seu trabalho e conhecerem o público. Desde shows de música a lip sync, números de dança profissionais a espetáculos burlescos e de comédia stand-up. Cada edição da festa traz diferentes performances, novos nomes para os palcos e uma multidão de fãs que parece crescer de forma exponencial.

As portas se abrem, e a escuridão da boate se mistura às luzes em tons de verde, vermelho e azul. O caminho até o bar, os banheiros, a pista de dança e o espaço que a cerca estão abarrotados. E nessa mistura de pessoas, as drag queens desfilam de um lado para o outro com os seus saltos-agulha.

Nessa noite a ocasião é especial. Na pista de dança, o palco largo, com um metro e meio de altura e o telão acima dele apresentam a edição da festa: o lançamento do programa Drag Me As A Queen do canal E! Television. O programa, de produção nacional, que estreou em 20 de novembro último, tem uma fórmula pronta: mistura cultura LGBT, transformações de visual e uma dose de autoconhecimento e emoções à flor da pele. A cada semana, uma mulher se propõe a colocar uma peruca, aprender uma nova maquiagem, mudar suas roupas e caprichar em uma performance diante de sua família, namorados e amigos. Ela se transforma em uma drag queen por um dia, sob os cuidados e instruções das três apresentadoras e também drag queens famosas na cena paulistana: Ikaro Kadoshi, Rita Von Hunty e Penelopy Jean. Nesse processo de transformação, ocorre uma jornada de aceitação e desprendimento de valores antigos.

A jornada já é uma velha conhecida de Bruna Tieme, 20 anos, que frequenta diversas baladas com sua personagem. Ela conta que nunca se considerou o que os outros têm como o estereótipo de normal. Sempre atraída pela arte, ela fez dança, teatro e topava qualquer experiência na qual pudesse expressar sua dramaticidade. Foi quando conheceu a arte de ser drag queen nas festas que frequentava. “Eu acho que drag é liberdade de expressão de si mesmo. Quando eu estou montada mostro tudo o que tenho por dentro e que eu gostaria de mostrar externamente”, conta.

Nesta edição especial da Priscilla, Bruna e outras amigas farão uma apresentação. Juntas elas formam o grupo de mulheres drag que se apresenta nas festas da noite paulistana chamado Riot Queens – nome que faz referência ao movimento de hardcore punk rock dos anos 1990 Riot grrrl, que reivindicava os direitos das mulheres. “Somos nove garotas agora. Cinco de São Paulo, duas do Rio de Janeiro, uma da Paraíba e uma de Minas Gerais.” Bruna lembra que quando conheceu a arte drag, não sabia que mulheres também poderiam se transformar. Ela conheceu a colega de grupo Fernanda Aquino, 23 anos, e as coisas mudaram. “Quando você está em mundo muito normatizado, acaba se escondendo muito. É difícil ser você mesmo. E a drag me trouxe o que eu precisava. Ela me trouxe a libertação que eu procurava”. Para Bruna, arte não tem idade. Não tem gênero. “Na arte não tem porque existir paradigma nenhum. Preconceito nenhum. Você não pode excluir alguém da arte. E drag é isso. Drag é arte.”

Às 2h40 da madrugada de sábado, Ginger Moon sobe ao palco com as integrantes do Riot Queens. Elas vestem lingerie de cetim em diferentes tons de rosa, branco, preto, vermelho e azul. E cintas-ligas pretas com meias 7/8. Por cima, jaquetas de couro preto, estilo de motociclista. Os penteados são esculturais, e as maquiagens levam traços profissionais, em cores vivas e marcantes. Um detalhe é adicionado para a apresentação da noite: um bigode falso que remete ao vocalista da banda britânica de rock Queen, Freddie Mercury, morto em 1991. Nas caixas de som, We Are The Champions começa a tocar. Os movimentos e a dança são sincronizados em cada passo. Uma pausa. Os bigodes falsos são arrancados e as jaquetas de couro jogadas para o alto. Por debaixo delas, escondidas anteriormente, sutiãs em cone com pedrarias agora brilham com a luz que reflete sobre o palco da Priscilla, anunciando a segunda parte da performance. A batida muda. Express Yourself de Madonna toca alto na boate enquanto as drag queens dançam o vogue. Para Fernanda, a mulher por trás da personagem Pamella Saphic, tudo começou com Madonna e RuPaul.

Ela conheceu a arte drag vendo o programa RuPaul’s Drag Race. Passava tardes e noites do fim de semana assistindo aos episódios no quarto. Episódio após episódio, temporada após temporada. E quando terminava assistia tudo mais uma vez. Ela sabia que poderia buscar das drag queens a inspiração e motivação para homenagear grandes mulheres. Queria fazer parte daquilo de alguma maneira, sabendo que teria que começar por si. “É libertador ser quem você quiser ser. Fazer as coisas do jeito que você quiser. Para uma mulher, isso é libertador.” Fernanda sabe que a arte de ser drag envolve muita coisa. Não é só o salto-alto, a maquiagem e o corpo feminino. “Isto são estereótipos do que é ser mulher e nós estamos aí para mudar isso. O conceito de drag está crescendo, mudando e ultrapassando o estereótipo.”

Quando pensa no tempo em que faz drag queen, Fernanda tenta se lembrar das coisas boas. Os perrengues existiram, mas ela não se arrepende em nenhum momento. É uma superação, digamos assim. A família dela não aceitou quando descobriu. Comparavam o que ela fazia como Pamella com prostituição. Então, teve que sair de casa. Fernanda sabe também que existe o preconceito dentro da cultura LGBT e dá o exemplo de duas drag queens na balada. Uma feita por um homem e outra por uma mulher. Ambas estão em pé de igualdade, em questão de qualidade na execução. Mas aquela drag queen feita por um homem geralmente é mais bem aceita do que a feita por uma mulher. “Para nós sermos encaradas como drag na noite é muito mais difícil.”

Mayna Venturini, 26 anos, também é conhecida como Cherry Pop e a fundadora do coletivo Riot Queens. Para ela, o céu é o limite quando o assunto é drag queen. Ela já ouviu de muitas pessoas sobre como ser uma mulher que se transforma é fácil, porque a mulher já está pronta. Mas sabe que não é bem assim. “Drag não é só o visual. Ser uma drag queen, ou uma lady queen como muitos nos chamam, é principalmente atitude”. Mayna conta que é preciso entrar no personagem. É preciso ter desempenho, paciência e carisma. “Ser drag é muito diferente de ser mulher.”

A personagem criada por Mayna vai muito além dos trabalhos que consegue em festas e baladas. Mayna tem síndrome do pânico e diz que a drag ajudou muito a superar algumas barreiras da doença junto com o tratamento médico. Sente-se menos ansiosa e mais confiante. “Você começa a se conectar com você mesma. Eu acho que o grande problema da autoestima é a falta de conexão com o nosso corpo.” E isso principalmente no caso da mulher. Você aprende a se aceitar e a entender que pode ser bonita do jeito que você é.

Por volta das três horas da manhã, começa a homenagem das três apresentadoras às mulheres que fizeram parte da primeira temporada do Drag Me As A Queen ao som de I’m Every Woman da cantora Chaka Khan. Uma frase fica na mente: “Ser drag é uma forma de quebrar barreiras de gêneros, não importa quais sejam eles. É uma forma de cultura. E cultura é para todos.”