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Edição nº 6 – 2016

Santos de gesso transformados em personagens da cultura pop

Comprar uma santa vestida de Frida Khalo para usar como artigo de decoração é pecado? Algumas pessoas consideram que sim. E quem produz esse tipo de ‘blasfêmia’ pode, inclusive, ir parar na cadeia. A artista brasiliense Ana Smile descobriu às duras penas a confusa relação que existe entre a religião e a liberdade de expressão artística. A página em que vendia suas peças foi ‘jogada na fogueira’ e a artista, além de ter sido ‘crucificada’ na Internet, enfrenta agora dois processos judiciais.

Tudo começou em 2013 quando Ana, na época subgerente de uma casa noturna, viu na Internet uma imagem do Batman com o Robin no colo e achou o máximo. Decidiu adquirir uma escultura dessas, mas depois de muita procura e nenhum achado, ela teve a idéia de fabricá-la por conta própria. E assim surgiu a primeira peça da Santa Blasfêmia. O que viria a se tornar um problema no futuro é que a imagem dos super-heróis simulava a posição de Santo Antônio com o menino Jesus. E a maneira mais prática de produzir esta peça foi usando, como base, o próprio santo de gesso – uma matéria-prima facilmente encontrada em casas de artesanato. Ela lixou, modelou, laqueou, envernizou, pintou… Transformou a estátua de gesso no conhecido personagem da cultura pop. A idéia fez sucesso entre os amigos e a, então, artista começou a confeccionar novos personagens: Malévola, Mulher-Gato, Frida Kahlo, Vingador, Chapolin, até a Galinha Pintadinha foi produzida, a pedido da sobrinha de quatro anos.

Até que um dia, ao se deparar com uma dessas ‘santinhas’ – nome carinhoso dado por Ana às suas peças – em uma loja em Brasília, um homem se sentiu ofendido e começou a divulgá-las na Internet no intuito de denunciar a obra, a qual considerou de extremo mau gosto. A repercussão foi enorme. Tanto a negativa, quanto a positiva. As vendas aumentaram muito, na mesma velocidade em que as ameaças – e ofensas – começaram a chegar até a artista. Mas o que ela não imaginava que iria, de fato, acontecer, era a proibição da comercialização da sua arte por parte da justiça.

A tentativa de abertura de processo contra a Santa Blasfêmia ocorreu em três cidades diferentes: Goiânia, Brasília e São Paulo. Mas apenas na cidade de Goiânia, em que a ação contra Ana foi movida pelo arcebispo Dom Washington Luiz, o processo foi aceito. Ele está em andamento, mas já foi liberada uma liminar pelo juiz Abílio Wolney Aires Neto que proíbe a artista de movimentar qualquer negócio relacionado à marca. Todo o material que existia em sua casa foi recolhido, a página no Facebook teve que ser apagada e não se ouve mais falar em suas santinhas.

Para compreender melhor toda a complexidade desta situação, entrevistamos a artista Ana Smile, o estudioso de religiões Luís Mauro Samartino e o advogado Fidel Costa, especializado em processo civil. As entrevistas foram feitas separadamente e o conteúdo delas você confere a seguir.

A equipe Arruaça tentou entrar em contato com o juiz Abílio Wolney Aires Neto e com o arcebispo Dom Washington Luiz, mas ambos não quiseram nos conceder uma entrevista. Entramos em contato também com a parte jurídica da arquidiocese de Goiânia que nos enviou uma nota (vide box 1) alegando que não vai se manifestar até a finalização do processo que corre na justiça.


Arruaça. Como surgiu a idéia da Santa Blasfêmia?
Ana Smile. Eu vi um dia na internet um meme desenhado de um santinho que era na verdade o Batman e o Robin no colo e eu achei incrível. O nome da marca surgiu por isso também, porque o Robin falava assim “santa blasfêmia Batman” e tinha alguma piadinha embaixo. Eu fui atrás dessa peça pra comprar e não achei nada parecido. O mais perto que encontrei fui um santo de gesso em uma loja de artesanato. Sempre fiz pinturas, mexi com artesanato e sempre gostei de desenhar. Fiz uma, postei nas minhas redes sociais, um ou outro amigo viu, gostou e me pediu para eu fazer outra. Fiz umas três e vi uma oportunidade de ganhar uma grana extra, criando outros personagens também.

Arruaça. Em que você se inspirava para criar os personagens?
Ana Smile. Eu sempre gostei de cultura pop, eu sempre gostei de super-heróis. O primeiro foi o Batman por causa do meme, mas em seguida vieram outros parecidos: a Mulher-Gato, o Super Homem. E as pessoas iam dando novas sugestões de personagens. A Galinha Pintadinha, por exemplo, eu fiz para a minha sobrinha de quatro anos que dizia “você pinta santo para todo mundo menos pra mim”.

Arruaça. Quando surgiu a idéia, você se imaginou em algum momento ofendendo a Igreja Católica?
Ana Smile. De jeito nenhum. Inclusive quando eu comecei a receber as ameaças de processo, que eu nunca achei que iriam adiante porque eu achava absurdo demais, eu via como piada. Tipo, não é possível que alguém se ofenda com tão pouco e queira tentar levar a frente algo tão bobo, que não saiba separar religião e arte. Até porque eu mesma não consigo enxergar ofensa nisso. Na época eu pensei, “deixa esse povo falar o que quiser, não é possível que vão perder tempo prendendo quem pinta santinho de gesso enquanto tem um monte de ladrão na rua”.

Arruaça. Como começou esse processo de rejeição ao seu trabalho?
Ana Smile. Quando eu comecei a pintar os santos, eu vendia de dois a três por mês, no máximo. Comecei então a vender minhas santinhas na Endossa [uma loja colaborativa em que cada comerciante aluga um espaço delimitado por um caixote para expor suas peças]. Depois de uns seis meses que eu já vendia ali, um belo dia, um pedestre que morava viu uma das peças, que, por um acaso, estava na vitrine. Ele entrou na loja, gritou, chamou a gerente, tirou foto, pegou meus cartões de visita, e exigiu que retirassem as peças de exposição. Os vendedores acalmaram a situação e o cara saiu de lá, com meus contatos e as fotografias que ele tirou. E aí ele começou a enviar isso para os grupos que tinha nas redes sociais. WhatzApp, Facebook, grupos religiosos, grupos jovens, tudo. Dizia que aquilo era um absurdo, que se sentia ofendido e que queria fazer alguma coisa. No mesmo dia eu recebi um e-mail da esposa dele me ameaçando, dizendo que iria me processar e que fora isso eu iria para o inferno. Essa divulgação foi tão grande que gente do país inteiro começou a entrar em contato comigo. A página tinha 300 likes nessa época. Em três dias ela foi pra 8000 likes, tamanho o rebuliço que esse moço criou. Mas, ao mesmo tempo em que a página chegou até muita gente que gostou do trabalho, uma enorme parte também achava aquilo tudo muito ofensivo. Era metade, metade. Foi uma época excelente de vendas, uma divulgação que eu nunca teria conseguido fazer sozinha. Mas rolou também uma retaliação muito grande. Gente me xingando, ligando, mandando e-mail. Usando mensagem de baixo calão mesmo. Minha mãe fez um post na página dizendo que ela vem de família católica e que ela nunca havia visto tantos cristãos e católicos falando tanto no nome de diabo, inferno e desejando mal para os outros. E aí ela começou a sofrer essa retaliação no Facebook dela também.

Arruaça. Que tipo de mensagem ofensiva você chegou a receber?
Ana Smile. Nossa de todo o tipo. Desde “você não tem vergonha na cara”, “o seu trabalho é de mau gosto” e “você vai para o inferno”, até “sua filha da puta”, “pau no cu” e afins. Baixo calão mesmo. Gente que se diz muito católico, que está dentro da igreja todo dia, me desejando muita coisa ruim e usando o palavreado mais feio que já vi.

Arruaça. Você tem religião?
Ana Smile. Eu sou espírita, mas a minha família é toda católica. Cresci na religião católica. Fiz primeira comunhão, fiz crisma. Minha família toda sempre freqüentou a igreja e minha avó, inclusive, é daquelas beatas que vai à missa todo domingo e que eu tenho que pedir “bença vó” antes de dormir.

Arruaça. A sua avó alguma vez enxergou de maneira negativa as suas peças?
Ana Smile. Não. Ela conheceu o trabalho desde o começo e achava engraçado, ria de uma peça ou outra. Nunca era algo que ela compraria para ter na casa dela, mas nunca se sentiu ofendida. Sempre deixou bem separado uma coisa da outra. Nunca disse que era de mau gosto ou me pediu pra deixar de pintar.

Arruaça. E os seus clientes? Eles tinham esse objetivo de afrontar a Igreja Católica?
Ana Smile. Ah eu acho que não. Eu acho muito bobo alguém comprar uma peça, que variava entre 200 e 450 reais, e gastar esse dinheiro para ofender alguém. E manter a peça dentro de casa! Não tinha esse alcance de “ah vou botar do lado de fora da minha casa pra bater de frente com meu vizinho católico”. A meu ver, todos eles compraram como uma peça decorativa, algo irreverente, ou, sei lá, uma arte pop mesmo.

Arruaça. Como esta o processo atualmente?
Ana Smile. Está correndo em primeira instância ainda. Tenho uma advogada maravilhosa que pegou os dois processos. O cível, que prevê multa de 50 mil reais, e o criminal, oferecido pelo Ministério Público que prevê detenção de um mês a um ano. Até a finalização deles, eu devo obedecer as regras que recebi que são tirar a página do ar, o Instagram e todas as fotografias de todos os meios de comunicação, inclusive dos meus perfis particulares que não são de venda e nem nada.

Arruaça. Até as suas peças de acervo pessoal foram recolhidas?
Ana Smile. Não porque eu não tinha nenhuma. As vendas foram tão boas que eu vendi inclusive as de acervo pessoal. Mas o oficial revirou a casa inteira. Abriu o armário, revirou os quartos, os cômodos. Quando eles vieram, eu só tinha material em branco, que são a base delas. Levaram dozes destas. Fora o constrangimento que passei com meus porteiros e vizinhos, porque todos me olhavam como se eu fosse bandida e estivesse escondendo droga dentro de casa, sem saberem de fato o que havia acontecido aqui.

Arruaça. Você se sente injustiçada?
Ana Smile. Eu me sinto completamente injustiçada. Tem sete meses que o primeiro processo começou e a minha vida mudou completamente. Porque eu não estava fazendo nada pra ofender ninguém. Não estava oferecendo minhas peças na porta de igreja e nem para fiéis que pudessem não gostar do trabalho. Quando deu esse estouro eu pedi demissão do lugar onde trabalhava para me dedicar 100% a minha arte. Pela primeira vez consegui viver apenas do trabalho artístico e logo depois do processo eu fui vetada de produzir. Então tive que voltar a procurar emprego, conta atrasada. Minha vida deu uma cambalhota.

Arruaça. Você acredita que vai voltar a vender?
Ana Smile. Eu tenho muita fé que isso vai acontecer. Já aconteceu a primeira audiência do processo criminal e o Ministério Público me ofereceu um acordo para tentar resolver a situação, como se fosse pequenas causas. Mas eu não aceitei o acordo porque eu continuaria proibida de pintar. E eu não acredito mesmo que eu preciso parar de pintar para as pessoas pararem de se ofender.

Arruaça.Você tem recebido apoio?
Ana Smile. Tenho e muito. De todos os amigos, conhecidos, clientes, pessoas que eu nunca conheci, que descobriram a página depois de todo rebuliço. Muita gente adicionando meu perfil pessoal porque a página não existe mais,dizendo que me apóia. Recebi oferta de inúmeros advogados querendo pegar a causa porque acham isso tudo um absurdo. De professores de artes plásticas, professores de artes cênicas, de muita gente ligada a cultura e a arte se colocando a disposição de qualquer coisa que pudesse ajudar.

Arruaça.Como você tem sobrevivido atualmente?
Ana Smile.Voltei a trabalhar no bar em que trabalhava quando o processo começou, e que sempre me deu muito apoio com essa história toda.


Arruaça. Por que, mesmo em pleno mundo contemporâneo, as esferas mais tradicionais como a religião, podem interferir na vida social?
Luís Mauro. Porque a religião não é só uma questão de fé individual e íntima. Quando você crê em alguma coisa, existe uma grande chance de você viver de acordo com os princípios daquilo em que você crê. E a gente vive com os outros, em sociedade. Então a religião está sempre, mesmo no mundo moderno, neste trânsito entre o particular, a nossa crença individual, e o público, que é a nossa relação com os outros.

Arruaça. Qual seria então o limite entre o direito do artista, como pessoa, e a censura ao trabalho dele?
Luís Mauro. Basicamente o limite estabelecido pelo direito jurídico. Mas o problema está na ambigüidade desta questão: de um lado, se tem a livre expressão, e de outro, a questão legal do vilipêndio de imagem religiosa, que é crime. Por exemplo, já aconteceu de grupos religiosos invadirem centros de umbandas para destruir as imagens, os orixás e tudo mais. Isso é vilipêndio, ou seja, a destruição ou qualquer atitude com sentido negativo à crença religiosa de outra pessoa. Mas quando se trabalha na questão da arte, fica mais complicado, por que se cai no fundo da liberdade de expressão. Porque não existe uma limitação absolutamente clara nestes casos. Este é um terreno muito pantanoso, de difícil reposta.

Arruaça. Que outro tipo de caso semelhante a este o senhor já conheceu?
Luís Mauro. Há mais de 10 anos atrás, foi lançado um filme com a Alanis Morrissete [Dogma, 1999] em que ela fazia o papel de Deus. Existia ali um movimento de modernização da Igreja Católica com uma recriação de todos os ícones. Na época houve boicote ao cinema e manifestações da igreja contra o filme e o diretor teve que se manifestar dizendo que era católico e que não havia nada blasfemo na produção. Mas mesmo assim houveram problemas. A questão da representação da imagem religiosa sempre foi muito problemática, porque as crenças estão muito arraigadas no íntimo da pessoa. Então aquilo que ela vê provoca sempre uma reação muito emocional. Casos como esses se repetiram ao longo da história. De um lado se tem o problema da liberdade de expressão, porque afinal, um dos papeis da arte é questionar limites. Do outro, se tem a crença que é um importante elemento para aqueles que crêem. Seria a mesma coisa se alguém fizesse uma reelaboração dos orixás ou da figura do Budha. É complicado. No fundo acaba se chegando à questão da constituição. Quem vai arbitrar isso é a própria lei.

Arruaça. O que você acha do crescimento da intolerância religiosa no Brasil?
Luís Mauro. Acho que a natureza deve ter se arrependido de ter destruído os dinossauros. Eles teriam feito algo melhor no planeta [risos]. É uma pena. Mas por outro lado, historicamente começamos a conviver com a diversidade a cerca de trinta anos ou nem isso. Sempre fomos um país majoritariamente católico e dos anos 80 para cá, começamos a ver uma mudança nesse cenário. Nos tornamos um país predominantemente evangélico em crescimento e católico por definição. E ainda podemos perguntar onde começamos a nos entender também como um país de matriz religiosa afro-brasileira. Esse conflito, ou contraste, ainda não foi muito bem assimilado em termos da convivência e da tolerância. Então estamos começando a nos acostumar com a presença do outro e lidar com o outro é muito complicado.

Arruaça. Quer dizer que você tem esperança de que esta situação melhore?
Luís Mauro. Sim, eu tenho esperança. As diferenças sempre existem, mas eu imagino que ainda vamos compreender que diferença não é desigualdade ou hierarquização. E assim como, na hora de construir algo ou trabalhar junto, o palmeirense, o flamenguista e o corintiano têm que trabalhar junto, eles não podem ficar ressaltando essas diferenças porque o trabalho precisa ser feito, eu imagino que em algum momento católicos, espíritas, umbandistas e evangélicos vão entender que o espaço publico dessas manifestações tem um limite. E esse limite é a presença do outro. Que em um primeiro momento o outro causa um estranhamento, mas depois pode-se descobrir que eles têm muito mais características em comum do que diferentes.

Arruaça. Você compraria uma peça dessa artista?
Luís Mauro. Não costumo obter peças de cunho religioso e muito menos de personagens da cultura pop. Mas na verdade não conheço o trabalho dela, então não poderia opinar neste sentido.


Arruaça. Como o direito interpreta o limite que existe entre a liberdade de expressão artística e a religião?
Fidel Costa. Olha, o conflito entre arte e religião é um tema polêmico. Aliás, todo tema que aborda religião envolve certa problemática. É possível que se essa pergunta for feita para outros operadores do direito, você obtenha respostas variadas. Se você acompanhar a trajetória histórica da arte, ela sempre esteve em conflito com interesses religiosos, afinal, quando um estilo artístico é criado, é comum que ele quebre sistemas e dogmas estabelecidos. Fato é que os dogmas religiosos se fazem muito presentes na sociedade. Desde o Brasil império, a Igreja Católica sempre teve influência sobre a questão cultural do nosso país. Ao longo desta problemática, nos perguntamos como este conflito se enquadra no nosso ordenamento jurídico? Levando-se em conta tanto a questão do estado democrático de direito quanto o direito daqueles que cultuam suas crenças. Para tentar responder isto, eu me basearia primeiro na Carta Magna do Brasil que disciplina sobre a liberdade da manifestação de pensamento e garantias individuais de todo ser humano. E usaria como respaldo também o artigo 5º e seus incisos 4º, 6º e 9º, além do artigo 220 e seu 2º parágrafo [vide box 1] da Constituição Federal.

Arruaça. A artista está sendo julgada segundo o artigo 208 do Código de Processo Penal. O que ele diz?
Fidel Costa. Ele diz que é crime “escarnecer de alguém publicamente por um motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, com pena de detenção de um mês a um ano, ou multa. Cabe ao juiz analisar a situação fática em questão e encontrar ali algum ato ou prática ilícita que poderia se enquadrar no caso das normas constitucionais e do artigo 208. Nesse caso especifico da Sra. Ana Paula, eu diria que o juiz vai analisar se a enquadra ou não nesta parte final do artigo, quando diz sobre o vilipêndio de objeto religioso, uma vez que o caso se trata de obras artísticas que remetem a imagens sacras.

Arruaça. O que seria esse ato de vilipendiar?
Fidel Costa. Vilipêndio seria uma forma de ultraje. O Ministério Público entendeu que foi um crime cometido, não contra uma pessoa, ou ao arcebispo Dom Washington que moveu a ação contra a Sr Ana, mas sim contra o sentimento religioso, afetando, assim, a coletividade.

Arruaça. Em uma linguagem leiga, vilipêndio seria o mesmo que fazer deboche?
Fidel Costa. Perfeito. Seria zombar, ridicularizar, humilhar. Qualquer um destes adjetivos se encaixam no conceito de vilipendiar. E vale lembrar que para que se caracterize o ato do vilipêndio, é imprescindível que ele ocorra em local publico, de maneira a afetar ou ofender toda uma coletividade com determinada prática.

Arruaça. Em sua opinião, o que você acha deste caso?
Fidel Costa. Eu sou advogado atuante em Brasília e, por coincidência, já me deparei com o trabalho da artista pessoalmente em uma feira. Elas são imponentes e causam certo choque, digamos. Mas a meu ver, eu as encaro puramente como obras artísticas. Até porque a minha análise sobre o artigo 208 é de que para haver prejuízo à religião, deveria existir uma intenção de ofensa por parte da artista. E não é o que me pareceu que ocorre. Estamos afinal, no século XXI. Cabe a cada um avaliar se é legal ou não ter aquele tipo de imagem em sua casa. Mesmo no caso daqueles que a adquiriam com um viés cômico e engraçado, como a estátua da Galinha Pintadinha, não me pareceu uma atitude ofensiva.

Arruaça. É possível, então, que neste caso a lei interceda a favor da artista?
Fidel Costa. A verdade é que a letra da lei às vezes não acompanha a evolução do ser humano. As relações interpessoais ocorrem em um espaço de tempo muito fugaz e o texto da lei permanece ultrapassado. E ë isso o que eu enxergo neste caso. A artista utiliza os moldes dos santos religiosos, mas não há intenção de causar dano. Eu espero que o Ministério Público e o sistema judiciário acompanhem esta evolução humana e não se limitem a tipificar a conduta da artista em um texto do código penal que já existe desde 1940 – salvo algumas atualizações. Mas a questão deste caso deve se passar por uma análise mais complexa e deve se observar qual de fato foi a intenção da artista. E não, simplesmente por que houve a denúncia de uma instituição religiosa, tipificá-la por achar que os entendimentos religiosos prevalecem aos entendimentos artísticos. O que eu acho é que o poder judiciário só tem a ganhar se elevar o nível desta discussão.

 

Nota publicada pela Arquidiocese de Goiânia em maio de 2016:

Para a Arquidiocese de Goiânia, o mandado proibitivo expedido pelo Excelentíssimo Sr. juiz Abílio Wolney Aires Neto responde, de forma justa, ao pedido de liminar contra a produção e comercialização de estatuetas de imagens católicas, que foram adulteradas e satirizadas pela senhora Ana Paula D. G. de Lima.

A liminar acata a argumentação da Arquidiocese, de que a autora extrapolou, deliberadamente, o seu direito constitucional de livre manifestação de pensamento, ferindo o também direito constitucional da Igreja Católica, de inviolabilidade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias (Art. 5º, VI, CRFB).

O argumento da livre expressão na atividade artística não é suficiente para encobrir o “perigo de dano” existente, porque é fato incontestável que as imagens satirizadas são objeto de devoção religiosa católica, tendo sido adotadas historicamente para representar Nossa Senhora (Maria, mãe de Jesus), os santos e o próprio Jesus. Não só as estatuetas, mas também as postagens em redes sociais sobre elas, ofendem a coletividade, violando o sentimento religioso, ao empregar escárnio, sátira e ironia. São exemplos a imagem de Nossa Senhora notoriamente adulterada e as interferências nas imagens de Santo Antônio e São Benedito, mantendo o terço nas peças e assim escarnecendo outro símbolo da religião católica.

Artigo 5º: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros, e aos estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”
inciso 4ª: “é livre a manifestação do pensamento sendo vedado o anonimato”;
inciso 6º: “é inviolável a liberdade de consciência de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”
inciso 9º: “é livre a expressão da atividade intelectual artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”.
Artigo 220: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veiculo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição”
parágrafo 2º: “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

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