Dados alarmantes sobre trabalho infantil, exploração e pobreza têm sido a realidade da criança brasileira, mesmo com seus direitos supostamente garantidos pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que foi criado no ano de 1990. O guia ‘Cenário da Infância e Adolescência – 2016’ aponta que 44% das crianças estão em situação de pobreza, 17% de pobreza extrema e cerca de 188 mil estão desnutridas. Quase 19% dos homicídios são praticados contra a criança e o adolescente, sendo 80% deles com armas de fogo. O relatório do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) afirma que o Brasil tem em torno de 60 milhões de habitantes com menos de 18 anos.
Ariel de Castro Alves, advogado, fundador da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) dedica seu trabalho integralmente às questões da infância e juventude. “O grande desafio até hoje está na efetiva implantação do ECA. Para isso é necessária uma atuação maior do Estado e de toda a sociedade, principalmente através de orçamentos públicos e recursos privados destinados aos fundos que priorizem a área social e a cidadania. Não é o Estatuto que não está sendo eficiente. O problema é o descumprimento da Lei pelo próprio Poder Público”, opina.
Em 1980, o Código de Menores, visava especialmente à questão de crianças em “situação irregular”, de vulnerabilidade social. A ideia tradicional da época era que elas eram incapazes e consideradas um problema para o Estado e as autoridades judiciárias. Geralmente eram encaminhadas para a FEBEM e, em vez de de serem protegidas e educadas, eram punidas, ficando segregadas da sociedade em todas as situações, independentemente de serem vítimas de violência e abandono ou autores de crimes.
Após 26 anos da criação do ECA, muitas ainda são obrigadas a trabalhar. “Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), 3,4 milhões de crianças são exploradas no trabalho infantil, no tráfico de drogas, na exploração sexual e na criminalidade. Apesar desse alto número de crianças e adolescentes trabalhando, nos últimos 20 anos a redução foi de 50%”, declara Ariel.
Sobre os casos de violência sexual, foram registradas 4.480 denúncias só nesse ano. Tânia* (nome fictício), 35 anos, sofreu uma violência sexual e testemunhou um assassinato. “Eu estava voltando da escola, quando um amigo do meu pai, que era cliente do bar dele, me chamou. Como o conhecia, fui. Ele me disse que ‘tinha lugar um legal para me levar’. Me pegou pelo braço e me arrastou, já desabotoando a calça. Percebi que algo estava errado, mas não tinha saída. Me lembro do cheiro de álcool que vinha dele. Porém, tive a sorte de um outro conhecido do meu pai ter visto que o homem tinha me desviado do caminho que fazia todos os dias para voltar para casa”, conta Tânia disfarçando seu incômodo em relembrar a história.
Emocionada e com os olhos fixos no filho de 18 anos que assiste a um programa policial na sala, ela diz que apesar de ter sido salva a tempo de o homem não cometer o estupro, presenciou o linchamento dele até a morte. “Vieram homens e mulheres que começaram a xingar e bater nele até morrer. Não se preocuparam em me tirar de lá. Então, essa marca e essa cena nunca sairão da minha cabeça. Me senti desprotegida”, relembra.
Tudo aconteceu no ano em que o ECA foi criado. “Mesmo na época sem entender direito o que esse estatuto significava, eu lembro de ouvir meus pais falando que talvez isso ajudasse outras crianças a não passarem pelo que passei. Eles se sentiram muito culpados. Mas, sinceramente, acho que não mudou muita coisa desde aquela época”, diz Tania apontando para a televisão, que exibe uma matéria sobre a investigação do estupro de uma garota de 16 anos por 33 homens.
Ariel de Castro acha difícil apontar o caso que mais tenha marcado sua carreira, mas cita um que também envolve abuso sexual, algo muito recorrente. “Recentemente atuei para tirar a guarda de uma mãe que era conivente com o padrasto que violentava sexualmente a filha. O Conselho Tutelar quando acionado se omitiu. A família fez Boletim de Ocorrência, mas a polícia não investigou. Quando fui contratado pela avó, que passou a suspeitar da situação, consegui imediatamente que uma delegada seccional ouvisse a menina. O depoimento foi contundente. Com uma cópia dele, entrei com uma ação de guarda para a avó e suspensão do poder familiar da mãe. A justiça imediatamente concedeu”. Era véspera do Natal de 2014, quando retiraram a criança da casa onde ela sofria os abusos. Para Ariel, foi uma vitória. “Era visível a satisfação dela de estar saindo da casa onde vivia com a mãe”.
Dentre outras violações que acontecem aos direitos da criança e do adolescente está a mortalidade decorrente da violência. Segundo Ariel, o grande desafio é impedir a morte de brasileiros de até 19 anos de idade. Atualmente, há 16 mortes para cada grupo de 1.000 crianças nascidas. Em média, 27 crianças são assassinadas por dia no país. A dura realidade da estatística é que até 2019, a previsão é de que 42 mil morram vítimas de homicídio. ”No Brasil, elas ainda não são tratadas como prioridade e estão à mercê da violência, crueldade e opressão”, diz o advogado, que está trabalhando no caso que ocorreu no último dia 3 de junho, em que um menino de 10 anos que foi morto por policiais durante uma perseguição após ter roubado um carro.
Na educação, houve avanços, mas está longe do ideal. Há 3,5 milhões fora da escola. “Conforme o Ministério da Educação e o UNICEF, 98% das crianças estão matriculadas no ensino fundamental e 85% dos adolescentes no ensino médio, mas é notória a baixa qualidade em boa parte das escolas públicas. Já o acesso às creches é garantido a apenas 30% das crianças com menos de três anos de idade”, diz Ariel.
Os órgãos de proteção no Brasil também funcionam de forma precária. Segundo pesquisas do próprio Governo Federal faltam 632 conselhos tutelares no País e os que existem não contam, na maioria das situações, com boa infraestrutura de trabalho. O próprio Poder Judiciário não tem estrutura adequada, já que muitas vezes os juízes acumulam funções e não contam com uma equipe de técnicos para auxiliar os magistrados.
O Conselho Nacional de Justiça em 2010 divulgou uma pesquisa mostrando que apenas 12% das Varas da Infância e Juventude do País eram exclusivas e especializadas, contando com juízes integralmente dedicados à questão e com equipes técnicas multidisciplinares, com psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. “Temos que prevenir, incluir e garantir oportunidades à juventude. Se o adolescente procura a escola, o serviço de auxílio para dependentes de drogas, trabalho, profissionalização e não encontra atendimento, ele pode partir para o crime. O ECA não precisa ser mudado e sim cumprido na integridade. O crime só inclui quando o Estado exclui”, conclui Ariel.