Você conhece o rosto. Está em todas as manifestações, em cada cartaz e em cada pichação. É aquela máscara pálida, de bochechas rosadas, com bigodes retorcidos para cima e um grande sorriso, ironicamente acolhedor.
Geralmente, o rosto vem acompanhado da citação: “O povo não deve temer seu governo; o governo deve temer seu povo”. Mas quem é o homem por trás da máscara? De onde ele veio? E por que ele se tornou um símbolo das manifestações que se espalham mundo afora?
O homem não tem nome; autodenomina-se “V”. E também não se diz homem, se intitula uma ideia. “V” é uma atormentada personagem da série de quadrinhos V de Vingança (no original, em inglês, V for Vendetta), de Alan Moore (autor de Watchmen) e David Lloyd.
A série foi publicada entre 1982 e 1983 pela DC Comics e mostra uma Londres mergulhada em uma distopia pós-guerra nuclear e dominada pelo partido fascista. Qualquer um que não se encaixe nos ideais do governo é preso em campos de concentração. Homossexuais, negros, comunistas, judeus, muçulmanos, prostitutas etc.
O medo é a maior arma do governo contra um povo que, aos poucos, vai aprendendo a ignorar o totalitarismo e a acreditar nas mentiras do Grande Líder (o High Chanceler), sofrendo uma verdadeira lavagem cerebral. É aí que entra V. Movido por um desejo de vingança pessoal – cujo motivo é surpreendente –, ele irá chacoalhar o povo inglês até conseguir despertá-los da ignorância e do medo.
No meio do caminho, porém, encontra a jovem Evey Hammond, que, aos 16 anos, já fora incontáveis vezes vítima do Estado. A sagaz moça ajuda V em suas empreitadas de destruição do Estado, mas também traz sentimentos há muito tempo esquecidos pelo mascarado.
A máscara que V usa (símbolo do movimento mundial Anonymous) é de um soldado católico inglês do século XVII, chamado Guy Fawkes. Ele foi protagonista da fracassada “Conspiração da Pólvora” de 5 de novembro, que pretendia-se explodir um parlamento dominado pelos protestantes. Como V gosta de lembrar, o homem morreu, mas não a ideia. E é dando continuidade aos planos de Fawkes que V começa sua vendeta explodindo o parlamento e assassinando um por um os membros e colaboradores do governo.
Vale lembrar que V de Vingança foi publicada em um período de transição para a Inglaterra e para o mundo: enquanto o socialismo da extinta União Soviética não parecia mais um modelo viável, graças aos horrores de Stálin, na Inglaterra, Margaret Tatcher implementava o neoliberalismo. V de Vingança, portanto, expressa as dúvidas e temores de um povo perdido com mudanças geopolíticas.
A série possui dez volumes, cada um com mais ou menos 35 páginas, divididas em capítulos cujos títulos começam todos com “V”: Vicious Cabaret, Victim, Valerie etc. A letra, aliás, é a base de toda a trama e está em toda parte (o nome do herói, código Morse, o número cinco em algarismos romanos, nomes de pessoas, frases em latim, etc.).
A arte é bem simples e os desenhos em geral, trabalham com a sombra e a perspectiva, com poucos detalhes e apenas algumas cores, o que forma uma atmosfera fria e rústica, assim como a da Inglaterra retratada na história. A graphic novel virou filme em 2005, estrelando Natalie Portman como Evey e Hugo Weaving como V, sob direção de James McTeigue.
Como toda adaptação, o longa deixa alguns detalhes importantes de lado e peca pelo maniqueísmo: a Evey do filme, por exemplo, é amedrontada, enquanto a dos quadrinhos já começa a história tentando se prostituir para ganhar mais dinheiro.
V de Vingança é um clássico dos quadrinhos que ensina muito sobre o medo e sobre o poder do povo e das ideias. Primorosamente montados, os dez volumes história se encaixam em um final surpreendente e emocionante que faz o leitor questionar sua natureza: se há ou não um V dentro de cada um de nós e, caso exista, o que falta para ele se revelar.