Ainda como caloura no curso de Jornalismo na Unesp, a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em 2011, Tayane Aidar Abib aprendeu em sala de aula e nas experiências de reportagem pela cidade de Bauru, interior de São Paulo, o valor social da mediação jornalística. Para além das diferentes funções da profissão, encantou-se desde o início sobretudo pela possibilidade que o jornalismo oferecer de criação de vínculos entre os sujeitos envolvidos nessa prática.
Quando, em meados de 2013, se inseriu no âmbito da pesquisa com projeto de Iniciação Científica, Tayane buscou aprofundamento teórico para suas indagações na ideia-chave dos “desacontecimentos” – um termo criado por Eliane Brum e que serve de título para uma das obras da repórter gaúcha, Meus desacontecimentos (LeYa, 2014) – como forma de delinear um caminho narrativo diferente no interior do universo midiático convencional, orientado, tal qual dá mostra a dinâmica produtiva de Eliane Brum (Zero Hora, 2006; Revista Época, 2008), pela cobertura de fatos e atores sociais à margem do interesse público e noticioso. O diálogo com o jornalismo de Eliane Brum resultou no livro O jornalismo de desacontecimentos (Novas Edições Acadêmicas), lançado em 2015.
O pensamento em torno de acepções e dispositivos jornalísticos alicerçados na dimensão do cotidiano e da sensibilidade deu o tom desse primeiro estudo e impulsionou também sua investigação de Mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Unesp e defendida no dia 31 de outubro de 2017, sob a orientação do professor Mauro de Souza Ventura, tendo na banca examinadora os professores Angela Maria Grossi (Unesp) e Dimas A. Künsch (Cásper Líbero).
Fundamentada no método da compreensão, a dissertação O jornalismo de desacontecimentos e o novo percurso narrativo de Eliane Brum: diálogos e transformações deu continuidade à análise da prática profissional de Brum iniciada ainda durante a pesquisa de Iniciação Científica, focando desta vez em suas produções como repórter e colunista no ambiente digital (Folha de S.Paulo, 2014; Portal Época, 2009-2013; El País Brasil, 2014-2015), de modo a entrelaçar o escopo propositivo dos “desacontecimentos” à epistemologia complexo-compreensiva.
Empenhando-se em exercitar uma abordagem inclusiva e pluralista do saber, no compasso dos convites de Edgar Morin, Cremilda Medina e do grupo de estudos Comunicação, Diálogo e Compreensão, coordenado por Dimas Künsch, o trabalho procurou assumir o gesto do abraço pela promoção de conciliações entre os estudos da Comunicação e da Filosofia, da Psicologia, da História Oral e da Sociologia do Esporte.
Refletiu, assim, sobre a possibilidade de se incorporar como recurso narrativo às produções jornalísticas o diálogo, a ternura, a complexidade e a compreensão intersubjetiva, na apuração atenta aos detalhes e no encontro com o Outro, com base nos valores manifestos pelos escritos de Eliane Brum – mas com a expectativa de estender esse horizonte ao cenário das narrativas da contemporaneidade.
Ao articular a matriz dos “desacontecimentos” à perspectiva da compreensão, Tayane buscou configurá-la como forma jornalística possível para se alcançar outros lados e protagonistas, privilegiando a alteridade e o movimento em direção ao Outro, no radical exercício de atravessar a larga rua de si mesmo como princípio norteador na arte de tecer e entretecer sentidos. A organização do caos em cosmos.
Diálogo aberto e plural
O orientador do trabalho de Tayane e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp, Mauro Ventura, destaca que enxerga o método da compreensão como motivador de um diálogo teórico aberto e plural, um caminho possível para a construção de um espaço de alteridade também no pensamento epistemológico do campo da Comunicação.
Ainda segundo ele, a compreensão inscreve-se como elemento-chave na discussão sobre as novas possibilidades de narrativa jornalística, na esteira de uma prática inclusiva e atenta às demandas daqueles que se situam à margem, pelo acolhimento das diferentes vozes na contemporaneidade.
“Tayane trabalhou com um dos lados mais importantes de uma epistemologia compreensiva, que é o da intersubjetividade”, afirma Dimas Künsch, líder do grupo de pesquisa Comunicação, Diálogo e Compreensão e coordenador do projeto de pesquisa “A compreensão como método”, do Mestrado em Comunicação da Cásper Líbero.
“Os ‘desacontecimentos’, essa metáfora para as figuras dos antiherois da tragédia-comédia do cotidiano, nos lembram que esses personagens, quando incluídos ou abraçados na produção social de sentidos sobre o mundo, podem revelar de forma primorosa e densa os sentidos mais profundos do viver”, completa Künsch. “É aí que o Outro, um Tu que deixa de ser um Isso para se tornar Sujeito, é assumido em sua condição de produtor de sentidos sobre o mundo, e, portanto, como fonte de conhecimento.”
TCC à luz do método da compreensão
As inspirações provenientes das buscas em torno de se compreender a compreensão, tanto em sua vertente intersubjetiva quanto de produção de conhecimento, reúnem sujeitos inquietos no universo das artes plurais da narrativa jornalística. É o caso também de Karine Seimoha, estudante do quarto ano do curso de Jornalismo das Faculdades Integradas Rio Branco, que estuda as mulheres sírias à luz da compreensão em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
O estímulo para o tema da pesquisa de Karine veio da experiência, da vivência, de dentro de casa: neta de sírios, logo que entrou na faculdade a estudante sabia que queria escrever “Sob o véu: uma guerra que tem rosto de mulher”. Já a ideia de como colocar isso em prática veio da sala de aula, da disciplina Jornalismo Literário, em que escreveu um perfil, como ela recorda, “de alguém que merecesse ter a história contada”. Já demonstrando uma atitude compreensiva, Karine vai ao anônimo, às histórias (e estórias) ordinárias: escolheu uma vizinha, nordestina, mãe de cinco meninas – de dois pais diferentes – que adoeceu, foi ameaçada de morte e precisou reinventar seu modo de viver. A partir daí, o interesse pelo tema só faria florescer.
Ao contrário do que muitos podem pensar, a pesquisa não é uma atividade solitária e individual, nascendo na verdade a partir de grandes encontros. Em 2016, Karine e Renata Carraro, sua orientadora do trabalho, sonharam o livro de perfis juntas e deram início à pesquisa sobre os refugiados e os motivos que levam a Síria a enfrentar um dos maiores conflitos armados da contemporaneidade.
A ideia, então, não era narrar “objetivamente” a vida dessas imigrantes, mas pensar suas personagens de forma mais subjetiva – e aí residia um grande desafio. Karine conta que quando começou a escrever a parte teórica do trabalho, deparou-se “com uma dificuldade: para conseguir contar a história das mulheres de forma mais humana, que criasse a aproximação com o leitor – um dos principais objetivos do Jornalismo Literário –, era necessário estudar um campo mais específico da Comunicação: a compreensão como método de estudo”. Para isso, ela entrou em contato com o grupo que leva em frente o projeto de pesquisa “A compreensão como método”, no início de 2017, e não saiu mais de lá.
O produto da conversa com um jornalismo que não explica, mas compreende o cotidiano, é “Sob o véu: uma guerra que tem rosto de mulher”, que narra a vida de quatro mulheres sírias refugiadas, com instantes de poesia de Elis Regina. Jornalismo, poesia e compreensão? Tudo a ver.
No momento na entrega do TCC, Karine Seimoha se compara ao imortal Brás Cubas, personagem de Machado de Assis: ambos sofriam de uma “ideia fixa” – ele, o Emplastro; ela, o livro de perfis sobre mulheres sírias refugiadas. Após ter dado vida à sua “ideia-fixa”, a autora reflete: “‘Sob o véu: a história de uma guerra que tem rosto de mulher’ não salva vidas, não cura todas as mazelas da existência humana, como era o objetivo do ‘Emplastro Brás Cubas’ –, mas pode amenizar os anseios de quem espera encontrar mais do que números de mortos, feridos e deslocados quando falamos sobre uma guerra. Este livro objetiva contar histórias reais e mostrar que a vida real também tem suas belezas – mesmo em situações completamente desfavoráveis à poesia cotidiana”.
Encontro com as autoras
As duas autoras vão apresentar suas pesquisas durante o III Seminário Brasil-Colômbia de Estudos e Práticas de Compreensão, que ocorre na Faculdade Cásper Líbero, entre os dias 4 e 8 de dezembro.
Na quarta-feira, dia 6, às 19h, Tayane Abib e Mauro de Souza Ventura apresentam: “O universo dos desacontecimentos em diálogo com a epistemologia complexo-compreensiva: conciliações possíveis no percurso narrativo de Eliane Brum”. E, na quinta, dia 7, às 19h, Karine Seimoha fala sobre “A importância de compreender a crise dos refugiados: observando a crise dos refugiados pela lente da compreensão”.