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Edição nº 7 – 2018

O vaivém diurno de aproximadamente 80 mil pessoas que chegam de metrô ao Largo de São Bento, centro de São Paulo, principal acesso à rua 25 de Março, à noite é reduzido a alguns trabalhadores que voltam para casa, moradores em situação de rua e profissionais da prefeitura que passam fazendo a limpeza do local. Não às segundas-feiras. Em frente ao quadricentenário e imponente mosteiro católico, que com arquitetura germânica se sobressai dos prédios comerciais ao entorno, acontece semanalmente uma manifestação cultural urbana. Por volta das 19h30, aos poucos, mulheres de várias regiões da cidade começam a chegar. Negras, descendentes de asiáticas, brancas, gordas, magras e altas. Nos cabelos, dreads, tranças rastafári, enfeites coloridos. Alguns homens também. Elas se reúnem para batalhar usando rimas e o acompanhamento de beats de rap.

Enquanto a batalha não começa, umas ensaiam passos de danças africanas, outras treinam habilidades com bambolês. Gabriela Nyarai, uma das idealizadoras da Batalha Dominação, passa recolhendo os nomes de quem vai participar do confronto. Mais do que convidar meninas para batalhar, Gabi, como é chamada por todas, é uma incentivadora. “Todas nós começamos errando, parceira. Aqui, entre as manas, nós estamos juntas e é um bom lugar pra perder a vergonha”, explica a uma garota que recusou se inscrever alegando timidez. Com a lista e o sorteio das chaves feito, um microfone é ligado a uma caixinha de som embaixo da cobertura da banca de jornais. O início do evento é anunciado: o mic está aberto e é só colar, galera.

Antes de a batalha começar, o microfone fica à disposição ao público. MCs de todos os gêneros podem declamar poemas, fazer freestyle de rap ou reconhecer o apoio das manas, pelo suporte psicológico e moral recebidos. Foi o caso de uma menina naquela noite, que começou dizendo: “Hoje eu não vim batalhar, só agradecer”. Enquanto isso, uma das organizadoras vai passando uma sacola de supermercado para recolher doações em dinheiro que serve de premiação para a vencedora. A Dominação, como a maior parte das batalhas da grande São Paulo, não conta com patrocínio, mas sim com a boa vontade do público para arrecadar o prêmio final. Na verdade, de acordo com a MC Flor Costa, 24, o que vale mesmo como troféu é a folha em que são anotados todos os nomes com as chaves da competição. A decisão das vencedoras é tomada através do grito do público.

Para batalhar na Dominação é preciso ser mulher. Há quase dois anos, a produtora independente Decidimos Mover Nossas Asas (DMNA) criou o evento para dar espaço e motivar meninas que gostam de rap, mas se sentem intimidadas a participar dos eventos mais antigos, em que a maior parte dos artistas são homens. “Nós pensamos: a gente conhece várias minas que rimam, mas elas nunca estão nas batalhas. Qual é o problema?“, explica Gabi Nyarai. Além disso, Ingrid Martins, uma das organizadoras, conta que existem dois tipos de batalha. A mais comum é a de sangue, em que os oponentes trocam ataques pessoais e ofensas, que costumam conter homofobia, xenofobia e machismo. A Dominação é uma batalha temática, em que o público escolhe um tema e as MCs fazem freestyle demonstrando a opinião delas sobre o assunto. “Comecei a frequentar a batalha das minas porque gosto de rap. Um dia colocaram meu nome na chave e por sentir que estava entre parceiras, fui. Antes eu tinha vergonha de rimar até sozinha, na minha mente, mas da mesma forma que foi para mim, a Dominação tem sido uma escola para muitas outras”, relata Flor Costa. Até o começo do ano, a batalha tinha um público que se limitava a 30 participantes, em várias ocasiões não fechavam chaves para batalhas. Atualmente, o evento já tem um público fiel que supera 80 pessoas por edição.

Quando morava em Cuiabá, Mato Grosso, Flor já gostava de rap. Frequentava uma batalha na praça central da cidade em que morava, Cuiabá, Mato Grosso. Mas há um ano e meio, quando se casou com um MC paulista, a relação dela com o estilo musical ficou mais profissional. Ao chegar em São Paulo, logo se mudou para o Parque Bristol, Zona Sul de São Paulo. O marido a apresentou às organizadoras da Dominação, e lá ela construiu amizades. Começou a batalhar e a ficar boa nas rimas. Agora ela também participa de vários outros encontros de MCs espalhados pela cidade. “Em outubro tive a honra de ganhar a batalha do Santa Cruz, a mais antiga e respeitada daqui”, diz. Pauê Oliveira, o marido, também se inseriu no rap de batalhas, mas há dez anos, quando os eventos quase não existiam. Ele conta que era fã do estilo musical e comparecia principalmente na batalha do Santa Cruz, a única que era semanal naquela época.

Há quase um ano, Flor, Pauê e mais nove rappers ganham a vida fazendo freestyle nos trens de São Paulo. Eles se organizam em um grupo chamado WutremClam, nome que faz alusão ao Wu-Tang Clan, grupo de rap de Nova York. O coletivo de rappers usa uma dinâmica conjunta de divulgação que eles descrevem como “um sobe e puxa o outro para cima”.  Todos se dividem entre as linhas para não haver competição pela audiência. “Antes eu trabalhada para os outros e era explorado, agora faço minha arte para pessoas que estão indo para o trabalho. Elas têm a mesma realidade que a minha e me sinto valorizado”, relata Pauê. O casal diz que a conta sobre público é simples de ser feita. Segundo eles, diariamente são 11 mil pessoas que passam por esse tipo de transporte na cidade, então são mil espectadores para cada um do grupo de rap. Eles preferem não divulgar o quanto faturam com o trabalho, até porque o comércio de produtos e serviços é proibido dentro dos vagões, mas que pagam as contas mensais. Segundo Flor, entre aluguel, água, luz, internet e a pensão da filha de um ano de Pauê, os custos fixos dos dois giram em torno de R$ 1300 mensais.

Segundo um relatório da empresa de pesquisas Nielsen, divulgado em 2017, o hip hop passou a ser o estilo favorito nos Estados Unidos, chegando a 25,1% de toda a música consumida no país, 2,1% a mais que o rock, antes o estilo favorito. E esses números americanos já começam a ser refletidos na capital paulista. As batalhas de MCs em São Paulo estão crescendo e se multiplicando. Atualmente, a cidade conta com pelo menos um encontro de rappers para cada dia da semana. Ao todo, são 15 batalhas semanais ou mensais que têm páginas fixas nas redes sociais. De acordo com Pauê, alguns eventos conseguem se monetizar e angariar patrocínio, pois vídeos de batalhas de sangue estão se popularizando no Youtube. “A maior parte do público que assiste a esses vídeos é de adolescentes. Por ser uma tendência, uma modinha agora entre eles, começaram a frequentar os eventos também. Isso acaba gerando renda e sendo uma oportunidade para as batalhas crescerem”, explica. As batalhas mais populares são a do metro Santa Cruz, com 11 anos de história; a Sexta Free, na Avenida Paulista; a Batalha da Estação, em Francisco Morato; a Batalha da Matriz, em São Bernardo do Campo; e a Batalha da Leste, no metrô Itaquera. A maioria dos encontros ocorre nas proximidades de uma estação de trem, para facilitar a chegada do público que vem de todas as partes da cidade, principalmente da periferia.

Na Praça Roosevelt, as rinhas de MCs já acontecem há quatro anos. Os organizadores a descrevem como a batalha mais suja da cidade, de sanguinolência total. Toda quarta-feira, por volta das 20h, o fundador Nino Crewolina e Rafael Castro, da organização, são os primeiros a chegar. Eles recolhem os nomes dos participantes da disputa, no máximo 16 por dia, e começam a explicar as regras. Para evitar acidentes, por conta da aglomeração de pessoas, os MCs são proibidos de batalhar fumando ou bebendo. São duas sessões de bate e volta e um terceiro round se houver empate. “Quem quer batalha boa aí grita ‘sangue’”, diz Creowlina para chamar a atenção do público. E assim começa. Sem microfone e ao som de beatbox, batidas feitas com a boca, os rappers se desafiam e quem decide o vencedor é o público, que vem crescendo e supera 50 pessoas a cada edição. “Nós fazemos por nós mesmos e que puder contribuir, coloque no boné o que tiver no bolso. Pode ser uma bala, chicletes, um isqueiro, mas se tiver dinheiro a gente também aceita. Este será o prêmio de quem ganhar”, grita Rafael Castro.

O rap nasceu na Jamaica e é uma sigla para ritmo e poesia em inglês. Na década de 1970, após uma crise econômica que assolou o país, muitos jamaicanos migraram para os Estados Unidos, e a maioria deles se alojou nos guetos de lá. Na mala eles levaram o novo estilo musical, que se popularizou aos poucos entre os mais pobres, negros e hispânicos. Na década seguinte, o rap também chegou a São Paulo. Nos anos 1990, o Brasil já conhecia Thaíde e DJ Hum, Racionais MCs e Sabotage, todos produtos da periferia da selva de pedra. Atualmente, se por um lado o estilo musical sofre a elitização dos temas tratados e do público consumidor, por outro continua sendo instrumento de militância das minorias.

Esse é o caso do Rap Plus Size, uma dupla de meninas que fazem rimas contestando o machismo e a gordofobia. Uma delas, Sara Donato, 22, canta rap desde os 14, e diz que o estilo musical é um movimento que luta conta diversos tipos de opressão, mas que ainda é muito misógino. “Ser mulher no rap é ser uma resistência dentro de uma resistência”, diz. Ela conta que mesmo quando ainda não conhecia o feminismo, já não achava certo vários tipos de manifestações machistas. “Sempre me perguntei sobre porque os Racionais cantam ‘vadia, mentirosa, espírito do mal, cão de buceta e saia’. Por quê? Alguma coisa significa, né?”, afirma. O poeta Filipe Silva, 21, gay, também sente na pele a discriminação dentro das batalhas. Ele conta nunca ter participado de uma rinha masculina por saber que será ser discriminado. “Eu sei que vou chegar rimando e receber insultos batidos sobre a minha orientação sexual. A batalha não vai ser sobre a rima”, explicou.

Mayara Lorena Greco, de 17 anos, cursa o primeiro ano do ensino médio, e mora no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo. Ela conta que nunca tinha ido ao Centro, até receber o convite do marido, no último dia 28 de setembro, para assistir à Batalha da Roosevelt. Mayara acredita que o rap é como o funk e outras músicas populares, uma manifestação da periferia. É a voz de quem mora tão longe, que demora a vida inteira para sair do lugar onde nasceu e conhecer a parte rica da cidade. Quando indagada sobre o que achou do passeio, ela responde com sinceridade. “Detestei, porque vim de saia, salto alto, me arrumei, mas estou passando muito frio. Mas gostei de ver que as pessoas daqui curtem a música da quebrada. Acho que todos têm que ouvir isso, pois talvez assim eles entendam o que a gente vive e lutem junto por mais dignidade para a gente”, declara.