Pouco antes do fechamento desta matéria, a Delegacia de Defesa da Mulher da cidade de São Vicente, litoral do Estado de São Paulo, inicia a investigação de mais um crime contra a mulher. Por volta das 22h de sábado, 3 de dezembro de 2016, uma menina de apenas oito anos de idade sai para comprar lanche numa padaria próxima. No meio do caminho, um desconhecido a aborda e oferece R$ 50 para ter relações sexuais com a criança. Ela é levada para dentro dum matagal, próximo da casa onde a garota passaria a noite sozinha com o irmão. É agredida em corpo, alma e espírito. A cultura do estupro chega à vida da menina. Com roupas ensanguentadas, o caso é denunciado por uma vizinha e a garota encaminhada a um hospital da região.
A cultura de estupro esteve em voga neste último ano pela violência sexual cometida por cerca de trinta homens contra uma adolescente de 16 anos. O ato ocorrido na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro só veio a público quando gravações viralizaram pela internet. Os dois casos deixam de ser exceção à regra quando o Fórum Brasileiro da Segurança Pública informa que uma cidadã sofre estupro no país a cada 11 minutos. Isto significa que quase 50 mil mulheres são violentadas anualmente no Brasil. Enquanto isso, a mesma organização não governamental afirma que 30% dos brasileiros, entre homens e mulheres, concordam que a mulher, ao usar roupas provocantes, não pode reclamar do estupro.
Maria Amélia Teles, 70 anos, fundadora e diretora do movimento feminista União das Mulheres de São Paulo. Amelinha, como é usualmente chamada, foi torturada e violentada por soldados a serviço do Regime Militar no Brasil. Segundo diz, a violência de gênero é a expressão maior da discriminação histórica contra as mulheres. Abarca vários tipos de violência que, ao ocorrer tanto nos espaços públicos como também no privado, atingem mulheres e transexuais. O termo carrega um significado forte e preciso ao indicar as violações dos direitos humanos cometidos contra às mulheres, afirma. “É a violência direcionada diretamente a elas, simplesmente por serem mulheres. É fruto da sociedade misógina e sexista.”
A ex-presa política diz que a violência contra as mulheres traz um conceito, no qual acumula-se a luta histórica travada pelas mulheres contra o patriarcado e a supremacia do poder masculino e a defesa dos direitos humanos das mulheres. Isto porque pessoas absorvem um complexo de padrões, comportamentos e valores institucionais, religiosos, políticos e espirituais pelos quais perpassa o androcentrismo, concepção que exerce forte influência na formação das sociedades com base na figura masculina. Um cenário que produz uma conduta ideológica machista, não afeita aos aspectos biológicos, afirma. “A cultura androcêntrica impõe como objetivo principal o controle sobre o corpo, a sexualidade, o desejo e a mente das mulheres para garantir a dominação masculina. Tem como eixo crucial a prática da violência seja física, emocional, sexual, institucional, patrimonial ou moral dentro do espaço doméstico ou fora dele.”
É num cenário como este que surgem músicas reproduzidas por jovens em várias festas promovidas por casas noturnas de todo o país. Adolescente e adultos cantam e dançam versos como “envolvida com a tropa, começou a seduzir, ai safada, na hora de levar madeirada”, de Malandramente, por MC Nandinho. É na contramão de exemplos como este que uma parceria do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) com a Secretaria Estadual de Educação (SEE) desafiou, neste segundo semestre de 2016, alunos da rede pública a apresentarem trabalhos musicais contra a violência de gênero. A proposta decorre dos dez anos da Lei Maria da Penha completados em agosto. A edição mais recente do Mapa da Violência confirma que quase 3 a cada 100 mil mulheres morrem todos os anos vítimas do feminicídio, sendo as negras a parcela da população na qual a incidência deste crime mais cresce.
O resultado foi o direito pleno à liberdade como alternativa às dificuldades enfrentadas no cotidiano das mulheres brasileiras como enfoque das canções apresentadas ao Concurso Musical Vozes pela Igualdade de Gênero. As letras versam sobre uma realidade presente na vida de milhões – o preconceito, a desigualdade e a violência doméstica. A vencedora Primeiros Passos, por exemplo, composta por Nathan Pereira da Silva, aluno do Ensino Médio, relata como a mulher ainda sofre discriminação e tem direitos marginalizados numa sociedade ainda considerada machista. A música será gravada em estúdio pelo produtor musical Rick Bonadio. De acordo com Fabíola Sucasas, diretora cultural do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD) e uma das coordenadoras da iniciativa, os resultados atenderam às expectativas dos organizadores. Os alunos trouxeram o discurso de combate às variadas formas de violência contra a mulher, sendo visível a dedicação individual e em grupos para participarem do concurso, diz.
Já o próprio samba pode ser usado como exemplo de inclusão social ao proporcionar uma leitura de mundo diferenciado e oferece poesia, literatura e músicas “nascidas da cotidianidade popular, diz a produtora musical e pesquisadora paranaense Juliana Barbosa. Como identidade afro-brasileira, o samba representa a herança na cultura brasileira e significa uma das principais formas de brasilidade, diz. Nesse aspecto, contribui para a inclusão cultural e social ao afirmar a importância da descendência e da matriz africana. “O samba está além de representar a cultura brasileira. Possui fator de integração social. Esses potenciais e outros vindos do samba podem ser potencializados em projetos e políticas de inclusão social, em sentidos diversos do termo”.