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Edição Especial – Junho de 2016

 

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Imagem do livro Geração Canguru – Ninho Cheio: Filhos Adultos Morando na Casa dos Pais | Foto: Mariana Figueiredo

“Eu moro com meus pais. Os benefícios são dividir as contas de casa e estar próxima da minha família”, diz Natália, 31 anos, assistente de coordenação, graduada em Administração de Empresas. Essa é a realidade de jovens com idade entre 25 e 34 anos, que trabalham e residem no estado de São Paulo. A Arruaça conversou com alguns deles sobre como é viver com os pais, após os 30 anos. Além disso, falamos com uma mãe de quatro filhos e com Mariana Figueiredo, autora do livro Geração Canguru – Ninho Cheio. Filhos adultos morando na casa dos pais.

Esses jovens não sofrem pressão por parte de amigos ou familiares para se mudarem, embora alguns deles se preocupem em conquistar seu próprio espaço. “Muitas vezes desejo poder ter um lugar para mim, mas no momento não tenho condições financeiras para morar sozinha ou até dividir um lar. O desafio é ter sua liberdade, convivendo com os familiares…”, afirma Lindsei, 32 anos, psicóloga. Além de diminuir gastos, essa convivência também oferece como vantagem ter mais tempo e recursos financeiros para investir nos estudos, o que contribui para a formação acadêmica. “Percebo que tanto homens quanto mulheres estão saindo cada vez mais tarde da casa de seus pais, porque hoje em dia o foco não está mais no casamento e na formação de família e sim no autoconhecimento e no crescimento, tanto acadêmico e profissional quanto pessoal”, declara.

“O benefício é tê-los por perto. Não tenho porque sair de casa, a não ser que seja para me casar. Caso contrário, eu não tenho a intenção de morar sozinha, isso nunca passou pela minha cabeça. Acho um grande desafio deixar minha mãe só”, afirma Lilian, 33 anos, analista contábil, com MBA em Controladoria. “Há pessoas que se casam bem cedo, mas isso não é uma regra. Legal mesmo é sair de casa para ser feliz, por um grande amor ou se você tem um sonho de morar sozinho (não é meu caso) ”, afirma.

Priscila, 32 anos, solteira, é bacharel em Direito. Trabalha como assistente jurídico. Mora com os pais. Dentre os benefícios, destaca a comodidade de ter pessoas que a auxiliam e a apoiam no dia-a-dia. O grande desafio é colocar em prática tudo aquilo que foi aprendido, tornando-se detentor de responsabilidade para ter a própria casa e a independência financeira. Na opinião dela, o apoio que sua família proporciona nessa fase da vida contribui para que ela possa se tornar uma profissional de sucesso. Nunca sofreu nenhuma pressão para se mudar. “Hoje em dia as pessoas priorizam a vida profissional, carreira, para depois pensarem em constituir família e ter filhos. Eu me cobro em me tornar uma pessoa bem-sucedida em razão da oportunidade que morar com meus pais me proporciona. “Tenho uma ótima relação com eles. Colaborar com a família é o mínimo, pois temos que ajudar com as despesas”, conclui.

Segundo relatório divulgado em 2010 pelo IBGE, 27% das mulheres que tiveram filhos estavam na faixa etária entre 20 e 24 anos, uma queda de 2,3% em relação ao levantamento publicado em 2000. O percentual de mulheres com idade entre 30 e 34 anos que tiveram filhos foi de 18,1% em 2010, em contrapartida aos 15,8% verificados em 2000.

Renan, 26 anos, trabalha na área de infraestrutura de uma empresa de tecnologia, em São Paulo. Cursou o ensino técnico em informática e programação de games. Mora com os pais. “Minha mãe e eu convivemos bem, ela precisa da minha ajuda por ter alguns problemas de saúde”. Ele nunca sofreu nenhum tipo de pressão para se mudar. “Quero muito ter uma família, mas não me cobro. Eu vejo como um futuro que quero alcançar, não como uma obrigação, algo que me pese ou obrigue”. Renan colabora com as despesas e com os cuidados da casa. Procura aproveitar o tempo livre para descansar, ou sair com os amigos e a namorada. O fato de não morar sozinho não limita sua liberdade. “Meus pais nunca me atrapalharam nisso”, afirma.

Diego, 33 anos, auxiliar de faturamento, mora em Taboão da Serra (SP). Iniciou o curso de Administração de Empresas, mas parou de estudar quando estava no 2º ano. Vive com a mãe, 58 anos, que está desempregada atualmente, e com o irmão, 28 anos. “Nunca pensei em me mudar. Minha mãe cuida da casa. Eu a apoio em tudo o que precisa. Divido as despesas com meu irmão. Trabalho desde os 15 anos de idade. Sempre tive liberdade para trazer minhas namoradas em casa. Acho que sairei de lá somente quando me casar”, declara.

Edineia, 54 anos, é mãe de quatro filhos. O mais velho chama-se Rodrigo, 31 anos. É o único que ainda mora com ela, em Embu das Artes (SP). “Ele está desempregado, costumava ajudar pagando algumas contas. É apaixonado por carros, gosta muito de passear e viajar. Costumamos sair juntos para nos divertir. O Rodrigo não concluiu o curso superior de Logística. Anteriormente, ele trabalhava como caixa de um supermercado aqui da região. Acho muito difícil ele ir morar sozinho, provavelmente só sairá para se casar. Temos uma ótima relação. Eu cozinho e cuido lá de casa, ele é muito sossegado. Meu filho tem liberdade para trazer as namoradas para dormir em casa, hoje em dia isso é normal”.

Edineia se emociona ao se lembrar do momento em que precisou deixar a casa dos pais. “Tinha 13 anos de idade quando minha mãe morreu. Meu pai quis me entregar ao juizado de menores, alegando que eu dava muito trabalho. Mas eu não dava, viu? Ele queria ficar livre da responsabilidade e cuidar de sua própria vida. O juizado não aceitou ficar comigo. Naquela época, uma senhora se ofereceu para me criar. Vivi na casa dela até os 22 anos, quando me casei”, conclui.

A professora universitária (dá aulas na UnB) e terapeuta de casais Mariana Figueiredo é autora do livro Geração canguru – ninho cheio: filhos adultos morando na casa dos pais. Ela esclarece que o tema é um fenômeno multicausal. “O fato de as relações entre pais e filhos terem se tornado mais abertas ao longo do tempo contribui para que os filhos se sintam com mais liberdade para estarem nas casas dos pais hoje, mesmo na faixa dos 30 anos. No final da década de 1960 e início da década de 1970, esses pais lutavam aos vinte e poucos anos por ideais de liberdade, mesmo que isso fosse baixar o padrão de vida que tinham. Não se preocupavam em ter de morar em repúblicas, isso não era um problema. Outro fator relevante é que os pais dos filhos ‘cangurus’ viveram uma relação muito hierárquica com os pais deles naquela época. Isso também contribui para que hoje sejam construídas relações mais horizontais, mais abertas ao diálogo. Isso faz com que alguns pais permitam aos filhos trazer companheiros, amigos, namorados para dentro de casa, mesmo dormindo no mesmo quarto. Essa liberdade possibilita que alguns desses filhos tenham quase tudo dentro dos quartos, transformados em quase miniflex”.

A autora ressalta que a questão do conforto é um ponto muito importante para essa geração, que se mostraria mais incidente nas classes médias e médias altas, embora também comece a surgir em outras camadas. “As pesquisas acadêmicas mostram que há casos em que os pais desempenham mais esse papel do que o de cônjuges, pensando numa análise desse sistema familiar”, pontua.

Segundo Mariana, a preocupação de atingir outros objetivos também poderia influenciar essa permanência prolongada. “Nas camadas médias e médias altas da população, muitas vezes, o filho só quer deixar a casa dos pais ao atingir o mesmo padrão que usufrui ou até acima. Ele junta dinheiro para comprar um imóvel, muitas vezes, já tem até um automóvel. Mesmo quando são dois jovens cangurus planejando um casamento, há um ritual de comprar o imóvel e aproveitar o fato de estar na casa dos pais para fazer uma poupança”.

“O que se tem observado nas pesquisas da PUC-RJ, PUC-SP e UnB sobre a Geração Canguru é que os filhos adultos estarem em casa seria muitas vezes uma proteção para que o casal não olhe para relação conjugal. Os filhos precisam trabalhar a independência total, principalmente a emocional”, esclarece.

Mariana pesquisa a geração canguru desde 2004. “Não há nada publicado academicamente falando sobre o que os filhos aprendem ao conviver por mais tempo nessas condições. Mas podemos pensar de forma pedagógica, no que eles poderiam aprender. Por volta dos 26 e 27 anos, se supõe que haja um aprendizado sobre individualidade e dividir, por estar essencialmente na casa dos pais. Os limites colocados pelos pais e a forma de comunicação podem demarcar território. Por exemplo, ao delimitar tarefas domésticas isso pode propiciar um aprendizado para esse filho, no quesito relacionamento. Por exemplo, estimulá-los a ajudar em casa, em questões financeiras. Eu já entrevistei pais que tinham três filhas nessa faixa etária e pediam para cada uma assumir a responsabilidade sobre uma conta, por exemplo, TV a cabo, Internet, etc. Isso é importante para aprender a gerenciar uma casa, e assim, consequentemente a própria vida, e essa questão da individualidade”.

“Os jovens dessa geração preservam a privacidade. O espaço do quarto é muito demarcado. Ao fechar as portas, ele garante a privacidade e a individualidade, mesmo quando o filho leva para lá o namorado/a namorada. Na Europa também existe esse fenômeno, em Portugal, por exemplo, tem arquitetos especializados em construir ‘puxadinhos’ ou entradas por fora da casa dos pais. Existe um movimento nessa direção, que seria valorizado por esses filhos adultos”.

Não há como homogeneizar o comportamento dessa geração, segundo a psicóloga. “O IBGE mostra que hoje o número de homens adultos solteiros na casa dos pais é maior do que o número de mulheres. Podemos explicar de forma simples, se pensarmos que as mulheres saem de casa mais cedo para casar. Mas, não podemos falar em pressão social, necessariamente. Não podemos generalizar, porque não é algo único. Existem várias características que um grupo de geração canguru pode ter. Por exemplo, podem ter filhos que se sentem confortáveis e outros que já sentem um incômodo e preocupam-se em guardar dinheiro, para sair com padrão parecido com o que têm na casa dos pais, ter um imóvel próprio, bens materiais para propiciar um conforto fora”.

Vale ressaltar que em 2010, as brasileiras eram responsáveis por 37,3% das famílias, e a expectativa de vida delas era de 77 anos de idade.

Quando questionada se haveria algum tipo de pressão social para a saída de casa, por parte das famílias desses jovens, Mariana diz que, de forma geral, isso não existe. “O que identifiquei em minha pesquisa de mestrado foi que não existe conflito dentro das famílias e nem social. Hoje isso já é muito comum. As famílias têm encarado bem essa questão. Muitas vezes os pais não querem que esses filhos saiam. Geralmente, sentem-se orgulhosos desses filhos estarem no mercado de trabalho, serem mais independentes e pelas conquistas que tiveram. Isso complementa uma situação de retroalimentação, em que muitas vezes, os próprios pais ou as mães se realizam um pouco através desses filhos. Tê-los em casa é uma forma de se manterem ocupados, em atividade. Não existe essa pressão social olhando para isso de forma negativa, até porque isso tem crescido muito”.

Mariana Figueiredo dedica-se ao tema também em seu doutorado. “Estou pesquisando sobre os casamentos de dupla carreira, ou seja, de filhos que saem da casa dos pais, sendo geração canguru, direto para o casamento, porque hoje não existe nada sobre isso publicado no Brasil”, explica. Quando indagada sobre o que a motivou a escrever o livro, afirma: “Um ano antes de fazer o mestrado em 2004, já comecei a pesquisar sobre esse tema, porque eu era uma filha de 26 anos que morava na casa dos pais em Florianópolis e grande parte da minha rede social também tinha essa condição. Eu já tinha meu consultório, já tinha uma independência total. Saí para fazer o mestrado em São Paulo. Conheci meu marido durante esse período. Hoje, moro em Brasília. Era algo que me despertava por não ver pesquisas publicadas, e no consultório já chegavam casos assim, isso há mais ou menos doze anos. Foi um fenômeno que foi crescendo, fui me apaixonando pelo tema. Escrevi o livro. O consultório foi alimentando isso, e hoje estou pesquisando sobre o casamento de filhos cangurus, que saíram da casa dos pais, e como isso impacta na carreira”, conclui.

Há cada vez mais jovens entre 25 e 34 anos morando com os pais. Segundo dados do IBGE, houve um aumento de quase quatro pontos percentuais entre 2002 e 2012, dos quais 60% são homens. Sejam quais forem os motivos, esses jovens têm mais escolaridade média em relação aos demais, segundo a Síntese de Indicadores Sociais, levantamento que considera números da Pnad 2012 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

Em 2010, o Brasil tinha 89,6 milhões de solteiros, 56 milhões de casados, 8 milhões de viúvos, 5 milhões de divorciados e 2,8 milhões de desquitados ou separados judicialmente, segundo o livro Estatística de gênero – uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010, publicado em 2014.