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Edição nº 2 – Dezembro de 2014

Crédito: Lucas Lopes

Em meio a estabelecimentos de comida e salões unissex, no centro do andar térreo da Galeria Boulevard, número 188 da rua Vinte e Quatro de Maio, na República, um senhor trajando uma camisa bem passada, calça social preta e sapatos de bico arredondado penteia com elegância os cabelos brancos em frente a um espelho em forma de abóboda. Com um espaço amplo e bem cuidado – o piso escuro limpo e as paredes, tal como um pilar no centro do estabelecimento, revestidas com mármore de cor clara – o Salão Lírico resiste às mudanças do tempo e à modernidade.

Gaspare Mirrioni, 79 anos, italiano da Sicília, está à frente do salão há 48 anos. Exerce a profissão desde os 15; aprendeu o ofício com sete. “Meu pai era barbeiro e não queria que eu ficasse na rua bagunçando com os outros meninos da escola, então me levava para o salão para vê-lo trabalhar e já começar a aprender a profissão”, conta o siciliano.

Gaspare chegou ao Brasil no dia 1º de abril de 1953. Abriu junto com seu pai o primeiro endereço do Salão Lírico no Brás, bairro em que vive até hoje. Trabalhou no Brás por dez anos, mas vendeu o estabelecimento após a morte de seu genitor. Conseguiu um emprego em um salão unissex, juntou dinheiro e reinaugurou em 1966 o Salão Lírico, dessa vez na Galeria Boulevard, no coração de São Paulo, a poucos metros da Praça da República e a três quadras do Teatro Municipal.

“O nome ‘Salão Lírico’ se deve ao fato de eu ser um grande admirador de ópera. Quando pequeno eu estudava piano e meu irmão cantava, então resolvi colocar esse nome no salão. Atendi a muitos artistas de ópera e tive muitos amigos que se apresentavam aqui no Teatro Municipal”, explica o barbeiro.

A paixão pela ópera é tamanha que Gaspare comprou um videocassete no início dos anos 1980 para exibir espetáculos líricos para o público. “Não cobrava nada, colocava a fita e abria as portas do salão para quem quisesse. Chegou a ter mais de 60 pessoas aqui dentro pra assistir aos espetáculos gravados. Elas ficavam fascinadas”.

Permaneceu por doze anos na “Loja 18”, mudando depois para um espaço maior e mais centralizado, na própria galeria. Hoje, instalado na “Loja 13”, o Salão Lírico sobrevive com uma clientela escassa. “Tenho até vergonha de falar, mas atualmente atendemos entre oito e dez pessoas. Na época em que as grandes empresas estavam aqui no bairro só eu atendia de dez a quinze clientes por dia”, afirma o italiano.

Crédito: Lucas Lopes

Crédito: Lucas Lopes

Para ele, um dos fatores para a queda de movimento e, consequentemente, dos negócios no salão é a decadência comercial do centro de São Paulo. “As grandes empresas saíram daqui. A região está muito diferente da época em que eu comecei a trabalhar. O centro está acabado e com muita violência. Pra mim hoje o Centro mesmo de São Paulo são Jardins, pra aqueles lados”. Apesar do baixo movimento, Gaspare se orgulha dos companheiros de trabalho e dos clientes fieis. Integram a equipe do Salão Lírico outros cincos barbeiros e uma manicure. O empregado mais recente já tem 18 anos de casa.

Divididas de maneira uniforme ao longo do salão, sete cadeiras revestidas de couro nas cores branco e vermelho em frente a espelhos em formato de abóboda compõe a tradicional barbearia do centro de São Paulo, que só atende ao público masculino. “Aqui só fazemos cortes masculinos e barbas”, resume Gaspare. Uma das cadeiras do Salão Lírico está vaga há mais de um ano. “Um barbeiro infelizmente foi embora. Não é fácil achar um bom profissional. Tem que saber trabalhar, atender bem e trazer clientes”, afirmou o siciliano.

Pai de quatro filhos e avô de cinco netos, Gaspare não acredita que sua família continuará tocando o negócio no futuro. “Tenho apenas um filho cabelereiro, que trabalha atualmente no Japão. Mas ele faz cortes unissex, então se assumir o salão é capaz de mudar a linha de trabalho”. O barbeiro ainda acredita que sua profissão está em vias de extinção.

“Eu acho que estão perdendo o interesse pela profissão. Hoje em dia ainda têm alguns jovens que se interessam em ser barbeiros, mas são poucos. É mais comum se especializarem para cortes unissex que dá mais dinheiro”, afirma com propriedade o profissional de 79 anos.

Quem quiser cortar o cabelo no Salão Lírico terá que desembolsar a quantia de R$ 35,00, enquanto para fazer a barba o valor é de R$ 30,00.

Salão Genial

Três ruas à frente, no número 77 da Basílio da Gama, espremida entre grandes prédios comerciais, em uma porta discreta quase não se percebe a existência do pequeno Salão Genial.

Sob o comando do português José Borges da Silva, de 90 anos de idade – 59 deles em solo brasileiro-, a barbearia é mais um dos estabelecimentos que resiste ao dinamismo da cidade grande e parece congelada no tempo.

Com as paredes de madeira clara, quatro cadeiras tradicionais de barbeiro com estofado em couro preto, espelhos redondos, dois pôsteres da equipe da Portuguesa, uma foto da cidade de Fátima e um simpático galinho de Barcelos pendurado próximo à caixa registradora, José Borges e Antônio dividem os poucos clientes e tocam o negócio.

Crédito: Lucas Lopes

Crédito: Lucas Lopes

Barbeiro desde os 15 anos de idade, José Borges é o terceiro dono do Salão Genial. Foi dono de duas barbearias no centro e trabalhou em outras tantas antes de se estabelecer na Rua Basílio da Gama.

Simpático, dono de poucas palavras e um tanto quanto impaciente, José Borges também vê sua profissão em descenso, mas mostra-se satisfeito com seu trabalho e explica o porquê continua na ativa.

“Olha, nossa profissão está sumindo um pouco. Eu particularmente não tenho o que reclamar, eu tenho meus clientes. Tínhamos quatro barbeiros, hoje somos só dois. Já poderia ter largado isso. Não largo porque vou sentir falta do trabalho e consigo ganhar um pouco de dinheiro, mas também os anos já estão a pesar nas costas, é um pouco difícil… Está bom?”, sentencia como quem quer encerrar o assunto por ali mesmo.

José Borges está no comando do Salão Genial há 33 anos e, assim como seu companheiro de profissão do Salão Lírico, lamenta as mudanças no cenário do centro de São Paulo. “Nem se compara. A gente podia passear a noite na praça da República sem problemas, sem violência”, relembra com nostalgia. Tanto o corte de cabelo quanto para fazer a barba custa R$ 30,00 ao cliente que optar pela experiência de José Borges no Salão Genial.

É cada vez mais difícil encontrar barbearias tradicionais em São Paulo, que preservem a história da cidade e a tradição do uso de toalhas quentes, navalhas e aqua velva para fazer a barba. Encontrar barbeiros com tanto carisma e que estão a tanto tempo exercendo a profissão é igualmente raro. Em meio a salões e mobiliários, remetem a São Paulo de “antigamente” e mostram que, apesar de resistir ao passar do tempo, a profissão se encontra no fio da navalha.

 

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