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Edição nº 2 – Dezembro de 2014

São seis horas da manhã de domingo. Nenhum sinal deles por enquanto. O vento sopra ruidosamente e derruba as folhas secas das árvores no chão. Um gato rajado atravessa lentamente a rua. Nada que chame muito a atenção. Até que se ouvem risadas. Seriam eles? Não, são apenas dois animados casais de adolescentes, provavelmente voltando da balada. Meia hora se passa. Eis que surge de uma estreita e escura viela, como se aparecesse do nada, um rapaz alto, magro, moreno, de cabelos lisos na cor preta e olhos levemente puxados.

Dono de um andar determinado, traz no rosto uma expressão séria, fechada. Aparentando ter pouco menos de 30 anos, veste camisa roxa desbotada, calça esportiva preta e tênis esgarçado. Chega ao local e se senta. Cerca de dez minutos mais tarde, é possível ouvir uma conversa em alto e bom som. Outros nove homens aparecem e se juntam a ele. Os dez são muito parecidos. Nenhum deles é brasileiro. Todos são bolivianos. E estão prestes a fazer o que mais gostam, em um lugar que remete exatamente à condição deles no Brasil. Vai começar o futebol na praça do Imigrante Boliviano.

Com cinco jogadores de cada lado, a partida se inicia. As demarcações da quadra estão quase todas apagadas, as balizas não têm redes e o alambrado é baixo, ou seja, há grande chance de a bola ir parar na rua. Nesse caso, a regra é clara: quem chuta, busca. Desde o começo do jogo, percebe-se claramente um clima amistoso entre as duas equipes. Não há lance violento. Afinal, é só diversão. Na primeira situação polêmica, um dos lados rapidamente intervém. “La pelota tocó en su mano”, alega um de seus integrantes, indicando que o adversário, ainda que involuntariamente, pôs a mão na bola, o que significa que é falta para seu time cobrar. Aos poucos, mais bolivianos chegam para jogar, e uma terceira equipe é formada. A partir daí, passa a valer um regulamento popularmente conhecido no Brasil como “dez minutos ou dois gols”. O time vitorioso permanece em quadra, enquanto o derrotado é substituído pelo reserva. Vence quem marca dois gols primeiro. Caso nenhuma das equipes atinja o objetivo em dez minutos, a partida é paralisada, e considera-se o resultado parcial. Se o placar estiver empatado, deixa a quadra quem está jogando há mais tempo.

Mal nasce o sol quando um dos jogadores dribla o marcador e chuta cruzado para superar o goleiro. Autor do primeiro gol do dia, Carlos Sánchez tem história semelhante à de muitos bolivianos que tentam a sorte no Brasil. (Para preservar a identidade do entrevistado, seu nome é fictício.) Nascido em Santa Cruz de la Sierra, mudou-se para São Paulo na esperança de proporcionar melhores condições de vida para sua família. “Estou no Brasil há quatro anos. Desde que cheguei, jogo futebol aqui”, diz. Questionado sobre o porquê de as partidas se iniciarem em um horário tão inusitado, esclarece. “Estamos acostumados a acordar cedo todos os dias. É por isso que aos domingos, nossos dias de folga, começamos a jogar antes das sete horas. E aí paramos lá pelas dez. Além disso, o sol não é tão forte pela manhã, e, jogando por volta desse horário, podemos ficar com a família no período da tarde”, explica Carlos, que trabalha em uma das inúmeras oficinas de costura da cidade.

A praça do Imigrante Boliviano está localizada na Vila Maria, zona norte de São Paulo, mais precisamente entre as ruas Porangatu e Sobral Júnior. É lá o principal reduto dos bolivianos, ao lado dos bairros Bom Retiro e Pari. Segundo registros oficiais, há aproximadamente 20 mil deles na capital paulista. Estima-se, entretanto, que esse número já teria ultrapassado a marca de 100 mil, considerando-se os imigrantes ilegais. A comunidade boliviana desbancou italianos e japoneses e já representa a segunda maior colônia estrangeira da cidade, atrás apenas dos portugueses.

Os bolivianos, contudo, ainda não são bem aceitos por boa parte dos habitantes de São Paulo. Há relatos de diversos casos de xenofobia, que geralmente resultam em agressões físicas e verbais. Diante desse cenário, é natural que os imigrantes do país vizinho prefiram se relacionar apenas entre si. O futebol na praça do Imigrante Boliviano, portanto, se torna uma das poucas fontes de lazer para eles. “Quase não saímos da Vila Maria. Fazemos tudo por aqui mesmo. Esse futebol aos domingos é muito importante para nós, porque é um dos nossos raros momentos de descontração. Serve para desestressar depois de uma desgastante semana de trabalho”, conta Carlos. Em tempo: é dele, para variar, o último gol do jogo.

 

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