Fritar. Insano. Sangue bom. Rolê. Mano. Mina. É foda. O vocabulário coloquial, tão comum nas quebradas da capital paulista, é o escolhido pelas grafiteiras que povoam a cena artística urbana para contar sua história, bater um papo sincero e falar da questão de gênero no universo do grafite. Em uma cena com nomes de peso como Os Gêmeos, Eduardo Kobra, Nunca e Speto, elas persistem como artistas talentosas fora do radar do grande público. “O movimento sempre foi equivocadamente masculinizado pela sociedade, associado ao vandalismo, a um ambiente em que mulheres não deveriam estar”, diz Evelyn Queiróz, a Negahamburguer. “Mas nunca achei que fosse um estilo exclusivamente masculino”.
Conhecido também como arte de rua ou arte urbana, o grafite (do italiano “graffitti”, que quer dizer “escritas feitas com carvão”) já era costume na Roma Antiga, quando cidadãos rabiscavam palavras de ordem e protesto nas paredes da cidade. Crítica social e urbana foram temas que retomaram o grafite na década de 1960 nos Estados Unidos, aliado à cultura da resistência presente no hip hop, no rap e no break. Na Europa, o estilo se fortaleceu durante os anos 1980, quando jovens artistas em Amsterdã, Paris, Berlim e Londres decidiram trabalhar em ateliês construídos em edifícios e fábricas abandonadas. O objetivo: criar arte urbana de forma livre com espaços amplos. Em comum, as mensagens falavam de violência, paz, amor, desigualdade social e isolamento – sentimentos comuns de quem oprime e é oprimido nas grandes cidades.
No Brasil, o movimento começou a se fortalecer em 1985, quando os maiores expoentes do grafite brasileiro começaram suas carreiras. Uma rápida busca no Google, no entanto, revela que, nesse período, os nomes mais famosos eram todos masculinos. E nos vinte anos seguintes, isso continuaria igual. Em 2005, a artista plástica e grafiteira Katia Suzue estudou a questão de gênero no grafite brasileiro. Em um levantamento acadêmico feito por ela, chegou-se ao número de 1.000 grafiteiros homens para cada menina que tentasse se aventurar nesse universo. Pioneira da arte de rua no Brasil, a artista plástica Nina Pandolfo é uma das poucas que consolidaram seu nome – com figuras delicadas, lúdicas e ultrafemininas – a partir de 1992. “E mesmo assim, sofreu muita comparação por ser esposa do Otávio Pandolfo, um d’Os Gêmeos, os maiores artistas do Brasil”, lembra Mag Magrela, artista plástica e grafiteira paulistana.
O grafite é pop
Em franco crescimento nesse período, o grafite ainda vivia na periferia brasileira e era taxado de vandalismo, sendo frequentemente confundido com a pichação (este sim, um ato de depredação). Foi a partir de 2005 que a arte de rua entrou no circuito cool e se tornou famosa, com o nascimento de galerias – como a Choque Cultural – dedicadas exclusivamente a comercializar esse tipo de trabalho. “Isso foi bom. As pessoas passaram a consumir o grafite como é hoje, mais pela arte, pela qualidade, e menos pela rua”, diz Ana Carolina Mezsaros, 28 anos, mais conhecida como Tikka Mezsaros.
De ascendência finlandesa, Tikka (que significa “pica-pau”, seu apelido de infância, em finlandês) afirma que gostava de desenhar desde pequena. Quando adolescente, começou a pichar com um grupo de amigas. Em 2002, uma delas começou a namorar um grafiteiro e levou a turma com ele para pintar muros. “Eu não fui por embalo, gostava de desenhar. Acho que as meninas são assim, vão por vocação. Os meninos acabam indo na onda dos amigos, começam sem ter interesse antes”, diz.
Tikka foi a primeira homenageada da 12ª edição do Dia do Graffitti, evento instituído no Brasil para celebrar a vida do pioneiro da arte no País, Alex Vallauri. Mas ela enxerga com pragmatismo o fato da maioria dos artistas famosos pelo grafite serem homens. “É uma coisa cultural. O menino é incentivado a andar de skate e cai nesse mundo naturalmente. Não é assim para a menina”, diz. “Além do mais, há mais homens pensando nisso [no grafite] há mais tempo. É natural que tenham mais maturidade e se saiam melhor”. A artista aponta outra dificuldade: a física. “É preciso carregar as latas de tinta, que pesam, subir em locais perigosos, ficar no sol quente, se sujar de tinta. Não é para qualquer uma”, afirma.
Conhecida pelos desenhos de meninas com enormes olhos tristes, Tikka hoje trabalha como artista plástica e faz desenhos para projetos e marcas de roupa, como a Ellus. As figuras femininas em muito lembram os rostos infantis, que, segundo ela, são “muito doidos”. “Adoro a expressão de criança, tão pura, tão sem filtro”, diz. A artista também busca inspiração em desenhos animados, filmes e ilustrações que vê na internet. “Tenho fascínio por objetos como xícaras e guarda-chuvas. São coisas poéticas para mim”.
O mundo é delas
Engajada com temas do universo feminino, a artista plástica Evelyn Queiróz, 26 anos, percebeu no grafite uma oportunidade para falar sobre a opressão e o preconceito que as mulheres sofrem, principalmente quando não se encaixam no padrão estético vigente. “O grafite está ali para quem quiser ver, gostando ou não desse tipo de intervenção, e falar assim com as pessoas é demais”, afirma.
Para isso, ela criou a personagem Negahamburguer – que, originalmente, era uma boneca gordinha com quem Evelyn dividiu a infância. A sua personagem, no entanto, é uma mulher comum que, quando surge – seja em muros pela cidade ou em telas e lambe-lambes –, aparece com traços disformes e se assume como gorda, magra, deficiente, negra, branca, parda, alta ou baixa, sempre próxima do mundo real e feliz em ser como é. “Esse é o espírito dela. Com esses desenhos, quero instigar, questionar e deixar que as pessoas reflitam sobre aquilo”.
O envolvimento com a temática feminina foi além e, em 2014, Negahamburguer lançou o livro “Beleza Real”, produzido com a ajuda de financiamento coletivo. Nele estão 53 ilustrações femininas baseadas em histórias reais de mulheres que sofreram violência sexual, moral e verbal. “Essa é a temática do meu trabalho. Eu sempre vou questionar a sociedade sobre os padrões, os preconceitos, e sempre vou defender a mulher, a liberdade, o feminismo e seus diversos conceitos”, diz.
Distante das ruas atualmente, Evelyn ainda vê o grafite em São Paulo como uma expressão artística marginalizada. “Tem muitos adeptos, mas ainda falta apoio, interesse e inclusão cultural para ter espaço definitivo na cidade”, diz. Ela também afirma que conquistar reconhecimento é algo difícil para mulheres desse universo. “As grafiteiras ainda estão marcando seu espaço. É um processo, e acredito que elas vão ter seu reconhecimento, por talento e por merecimento, mas ainda temos chão pela frente. O machismo infelizmente ainda atinge esse meio”, diz.
Gueixas e maternidade
Aos 17 anos, Katia Suzue optou por se unir aos pais no Japão. Ao chegar ao país, logo se matriculou em uma escola para aprender o idioma local. Lá, conheceu seu professor, um artista plástico especializado na tradicional escola japonesa de ilustração e que decidiu ensiná-la a desenhar. “Ele praticamente me adotou, virou meu mentor. A cultura do sensei [termo usado para professores e mentores] é muito forte lá”, diz. As aulas semanais se tornaram sessões diárias de pintura e gravuras. “Ele vivia me falando para estudar e ser alguém, não ir para a fábrica apertar parafuso”, conta.
Quando voltou o Brasil, Katia decidiu cursar Artes Plásticas. Foi desenhista em estúdio de tatuagem, se especializou em educação e hoje dá aula de Arte Urbana e desenho no Catavento Cultural e Educacional, instituto que oferece cursos interativos para estimular jovens e adultos. Recém-instalada no interior de São Paulo com o marido agrônomo, ela produz em seu ateliê as mesmas figuras que a tornaram famosa nas ruas de São Paulo: imagens femininas com referências orientais, como cores marcantes, pavões, olhos puxados e flores de cerejeira. “Eu aprendi a desenhar no Japão. Então, minha inspiração vem da cultura deles, como o zen-budismo e o mangá”, explica.
Em 2012, Katia passou por uma prova de fogo na carreira ao viver uma gravidez complicada e ficar de repouso até o nascimento de Jun, em fevereiro de 2013. “Eu me sentia no auge, mas não podia sair com as amigas quando elas me chamavam para fazer algum muro. Pensei que nunca mais fosse pintar de novo e chorava todos os dias”, afirma.
Casar, ter filhos e constituir família é, para Katia, um dos obstáculos no mundo do grafite. “É um caminho que muitas mulheres desejam, mas que acaba deixando a vida mais complicada. É incrível de bom, mas difícil. Precisa convencer a família que aquele estilo de vida é legal e ainda conciliar com marido, filho. E também exige muito do nosso físico”, diz. Mesmo assim, ela não deixou a rua de lado. “Sempre deu certo e sempre rola comigo, eu faço por prazer. E agora, quando dá, levo meu filho comigo”, diz.
Aos 35 anos, a artista afirma que não pensa mais sobre preconceito de gênero, mas ainda vê um abismo entre artistas homens e mulheres. “Na última Bienal [Internacional de Graffitti Fine Art, que aconteceu em São Paulo entre abril e maio deste ano], por exemplo, tinha apenas sete mulheres”, afirma. “Não é fácil para as minas, é um ambiente ainda muito masculino”, diz ela, que mesmo assim vê maior participação das meninas nos rolês – como eles chamam as “sessões” de pintura nas ruas. Hoje, Katia estima sejam “umas cinco meninas para cada 50 caras”.
Curiosamente, para ela, são os homens que querem provar alguma coisa com sua arte, deixando as mulheres mais livres para expressarem aquilo que sentem. “Os meninos são mais cartesianos, buscam a técnica, se enquadram no papel do grafiteiro. Já a mulher é orgânica, de dentro para fora. Tem, sim, o rosa, o menininha, mas ela toca o foda-se. Ela não quer, nem precisa, provar nada para ninguém”.
A arte de ser mulher
Mesmo desfrutando dessa liberdade artística, as grafiteiras sofrem preconceito por sua atuação. “É uma coisa velada. Já ouvi bobagem, mas não foi nada agressivo, era simplesmente algo que estamos acostumadas a ouvir e viver no cotidiano. Por isso, deixei pra lá”, afirma Mag Magrela.
Mas o preconceito também pode estar escondido em outro espaço: dentro da própria mulher. Magrela cresceu em uma família tradicional paulistana e, embora o pai tenha injetado o gosto pessoal pelas expressões artísticas com a pintura e a música brasileira, era claro que existiam regras do que eram atividades para meninos e para meninas. Quando começou sua “história na rua”, como ela mesma chama, em 2007, aos 22 anos, a então jovem mulher se viu intimidada e buscou fugir do que considerava “desenho de menina”. “Minhas criações eram mais agressivas. Eu não queria que alguém visse e pensasse: ‘Ah, isso foi feito por uma mulher’”, conta.
Consagrada hoje por suas figuras femininas nuas, carregadas com nuances e questões da mulher comum, ela diz acreditar que a fase refletia o preconceito que estava dentro de si. “Eu era muito moleca, tinha vários amigos homens e enxergava a mulher como o sexo frágil, um ser difícil de entender. Na verdade, eu não me entendia, eu queria um pouco daquela liberdade dos meninos de fazer e falar o que queriam, sem medo”. Aos 30 anos, ela afirma que a virada só veio com o amadurecimento pessoal, o autoconhecimento e a aceitação de sua condição feminina. “A minha arte é a minha vida. As figuras que faço hoje são autorretratos. São as minhas facetas, o meu lado criança, velha e por aí vai. Todas temos isso dentro de nós, então, as mulheres se identificam”.
A fama das grafiteiras, no entanto, é relativa. “O feminismo está na ponta da língua da galera, então estão procurando a gente para eventos e trabalhos. Mas eu ainda acho que falta foco para esse tema, tanto no trabalho das meninas como na sociedade”, diz Magrela. Ela, no entanto, vê o lado bom dessa questão. “O grafiteiro se encaixa em um estilo de vida e levanta a bandeira do hip hop, do break. A mulher não, ela é livre. A gente só quer continuar livre e não entrar em mais rótulos”.
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