Quem ouve falar sobre um evento fechado para duzentos jornalistas em um palco flutuante montado no rio Negro, em Manaus, jamais imagina que possa ter – indiretamente – contribuído para o seu financiamento. O projeto Amazônia Livre é apenas mais um exemplo de iniciativa cultural – incongruente – subsidiada por meio da Lei de Incentivo à Cultura, também conhecida como Lei Rouanet.
Criada em 1991, a lei permite que pessoas físicas e pessoas jurídicas apliquem parte de seu imposto de renda em ações culturais. Apesar do intuito nobre da lei, que de um lado buscava a democratização da cultura, e, de outro, objetivava educar as empresas e cidadãos a investirem em cultura, muito se questiona a respeito da sua real função.
De acordo com a advogada Nathalia Roggiero, “a lei foi desvirtuada por completo, começando pelo fato de que os incentivos criados por meio dela somente deveriam ser concedidos a projetos culturais cuja exibição, utilização e circulação dos bens culturais deles resultantes sejam abertas, sem distinção, a qualquer pessoa, se gratuitas, e a público pagante, se cobrado ingresso.”
No caso do projeto Amazônia Livre, os organizadores, quando questionados sobre eventual descumprimento da lei, já que o evento é exclusivamente privado, mencionaram – sem qualquer constrangimento – que haveria, sim, participação pública, e que esta se daria por meio de telões espalhados em diversas cidades Brasil afora.
Outra fragilidade da norma é que ela não veda a concessão de crédito a projetos autossustentáveis. Em 2014 o Ministério da Cultura aprovou R$ 4,1 milhões para a turnê do cantor sertanejo Luan Santana, por meio do qual – pasmem – esperava-se “democratizar a cultura” e “difundir raiz sertaneja pela música romântica”. Outros R$ 5,7 milhões foram aprovados para a realização de “um painel artístico de difusão cultural nos segmentos da música, dança e artes cênicas” no Club A, em São Paulo, um casa noturna da elite paulistana, que tem como ex-sócio Amaury Jr.
A lei tampouco veda patrocínio a projetos bizarros. Foi aprovada, em 2011, captação de R$ 1,35 milhão para a criação de um blog de poesia que levaria diariamente, e durante um ano, uma nova poesia, lida em vídeo, por Maria Bethânia. Já em 2014 – o que mostra que o tempo passa, mas nada evolui – se aprovou financiamento de quase R$ 1,8 milhão a uma peça de teatro sobre a porquinha britânica “Peppa Pig”, que é personagem de um desenho exclusivo da TV por assinatura. Segundo a advogada Nathalia Roggiero, “esses são apenas dois dos muitos exemplos de projetos absurdos financiados pela lei.”
Enquanto isso, pequenas iniciativas, que realmente precisam de tal auxílio, são marginalizadas. O ator Theo Monteiro, por exemplo, diz que ele e seus colegas “nunca chegaram perto de serem aprovados”. De acordo com ele, “o objetivo da lei é deturpado por dois motivos: primeiro pois o poder público apenas aprova o que o interessa; e, segundo, porque as empresas financiadoras não tomam medidas desinteressadas, elas têm ambições próprias e preferem vincular suas imagens a grandes eventos – dotados de boa reputação – como forma de autopromoção.”
Um grande exemplo disso aconteceu em 2005, quando ao maior produtor teatral do mundo, o canadense Cirque du Soleil, foi aprovada a captação de até R$ 9,4 milhões. Dentre as empresas financiadores encontram-se o Bradesco e a Gol, que tiveram suas marcas divulgadas nos kits de propaganda do evento, e em alguns cartazes espalhados pelo espetáculo.
Para o jornalista Kiko Nogueira, o problema envolvendo o interesse das empresas privadas é ainda mais preocupante. Segundo ele, existem diversos casos em que uma empresa financia outra empresa do mesmo grupo econômico. “Quando a fundação é do próprio grupo, tem-se uma situação ganha-ganha. O dinheiro sai do caixa da companhia, livre do fisco, e entra numa fundação que lhe pertence. É quase lavagem. E é, em tese, legal.”
E por ser, em tese, legal, o combate a tais absurdezas se torna ainda mais difícil. O interesse em guerrear, aqui, é quase que exclusivo da população, que carece da sua única arma: a informação. O poder público, as grandes empresas e os veículos midiáticos estão preocupados com um único verbo reflexivo: se camuflar.
Apesar de permitida, a dedução de parte do imposto de renda significa menos dinheiro sendo arrecadado aos cofres públicos, o que, por sua vez, significa menos recursos direcionados a áreas essenciais, como educação e saúde. Nesse contexto, o mínimo que se pode esperar do Ministério da Cultura é que ele estude detalhadamente a necessidade de um projeto usufruir de tal financiamento público, e que haja fiscalização sobre o emprego de tais recursos. Caso estes pontos não sejam melhorados, a lei continuará sendo usada – e não seguida.