São duas horas de uma tarde de quinta-feira. João e sua namorada, usuários constantes das redes sociais, chegam a um parque de São Paulo. Um pouco mais adiante, uma professora universitária aproveita a temperatura amena para brincar com seu filho de três anos na grama. Enquanto isso, sentado em um banco, um homem de 60 anos faz os exercícios de seu curso de alfabetização. Nesse instante, alguns jovens se aproximam e se oferecem para ler um trecho de um livro. Ainda um pouco surpresos, todos aceitam o convite.
Essa cena fictícia, mas que podia ser real, ilustra o que é a mediação de leitura, experiência cultural na qual alguém interessado em ler, o mediador, põe em contato um livro com um ouvinte disposto a compartilhar uma narrativa literária. Para Eduardo Alencar, do grupo ‘Os escritureiros’, “o mediador é aquele que faz a ponte entre o livro e a pessoa que o escuta”. Segundo Sidinéia Chagas, integrante do mesmo projeto, “não há uma definição que determine quem pode ser o mediador. Qualquer pessoa pode ser, a partir do momento que deseja fazê-lo e recebe uma formação para isso”.
Mediar é também uma ação espontânea. O mediador está preparado para lidar com os silêncios do outro, com suas reações e reflexões. Embora em diversas bibliotecas do município de São Paulo a mediação esteja se tornando um serviço, com horários programados, os funcionários estão aptos a ler para o público a qualquer momento, como relata Áurea dos Santos, funcionária da Biblioteca Municipal Sérgio Buarque de Holanda, “Tive uma experiência na biblioteca quando preparei uma atividade para a Festa do Livro e da Leitura em São Miguel Paulista. Selecionei algumas obras literárias e quem me ajudou a decidir quais trechos seriam utilizados foram os frequentadores, pois dependendo da reação das pessoas eu separava a poesia. Fiz mediação de leitura o dia inteiro”.
A realização dessa atividade é sempre gratuita para o ouvinte, de todos os pontos de vista, pois não há custos financeiros ou cobranças interpretativas, como as existentes em provas e vestibulares. Se a relação que construímos com a literatura na maioria das vezes está muito atrelada à vivência escolar, que prioriza a leitura utilitarista, nunca com um fim em si mesma, a mediação se propõe a conquistar o leitor, convertendo a leitura em uma atividade habitual e prazerosa.
Assim, por não depender de qualquer conhecimento prévio do autor, do texto ou de literatura, a mediação é um espaço bastante democrático. Não há restrições etárias ou sociais, também não se exige qualquer nível de escolaridade, todos podem interagir com os mediadores: crianças, adolescentes, adultos, moradores de rua, estudantes universitários, analfabetos, portadores de necessidades especiais. Exemplo disso é o grupo ‘Os Escritureiros’ formado por jovens do bairro de Parelheiros que, dentre diversos projetos sociais e de incentivo à leitura, realizam mediação com crianças da região sul de São Paulo. “Há uma creche onde fazemos mediação de leitura a cada 15 dias, das oito da manhã às quatro da tarde. As crianças nos veem chegando com a bolsa de livros e já sabem o que tem dentro. Logo já observamos as primeiras reações: ‘Olha o tio da leitura!’ Quando ficamos um tempo sem ir eles reclamam”, conta Eduardo. De acordo com Sidinéia, as crianças não têm ainda quatro anos de idade, mas cobram a presença dos mediadores. “Mesmo quando estamos na rua nos identificam”, complementa.
Cabe ressaltar também que a prática de mediação não está limitada a estabelecimentos específicos, como escolas e bibliotecas. A Cor da Letra em parceria com o SESC realiza ações de mediação de leitura em algumas unidades. “Leitura não tem a ver com instituição nem com cargo e função. Para realizar essas ações é organizado um espaço simples onde há mediadores disponíveis para oferecer leituras e livros. Como é uma ação cultural, não há uma atuação programada. Quando estamos em um espaço cultural também somos movimentados pela dinâmica do outro. Tentamos trazer as pessoas para o espaço a fim de que elas entendam que a participação se dará à sua maneira, não da forma imposta pelo mediador”, salienta José Roberto da Silva, assistente de coordenação da empresa.
O respeito ao conteúdo é condição fundamental da mediação. O texto é lido com exatidão, sem omissões ou acréscimos de palavras, e as imagens que o acompanham são expostas ao ouvinte, visto que a conexão entre esses dois elementos compõe a essência do trabalho literário. “Na mediação o destaque é dado ao livro e à leitura que está dentro dele. Respeitamos o texto e a imagem que foi feita para contemplá-lo”, explica José Roberto. “Mediar é ler o texto na integra, contar o que está escrito no livro, não são necessárias fantasias ou gestos”, conclui Eduardo.
Um dos principais objetivos dessa ação cultural é permitir aos participantes que eles tenham acesso à cultura do livro, em sentido amplo, pois não se trata apenas de entregar um exemplar à pessoa esperando que ela o leia. É tentar dar ao ouvinte outro significado para a leitura. “Para nós do A Cor da Letra a mediação é uma prática de incentivo à leitura que tem três objetivos fundamentais: garantir o acesso ao livro, à narrativa literária e inserir as pessoas na cultura escrita”, ressalta José Roberto.
A partir daí ser leitor se torna uma escolha. Caberá a cada indivíduo, após ter o contato com obras literárias, decidir se converterá a leitura em uma prática cotidiana e que tipo de texto o entretém. Nenhum gênero deve ser descartado. Romance, quadrinhos ou poesia, todos os gêneros podem e devem ser lidos.
A mediação permite que haja uma troca de repertórios culturais entre leitor e ouvinte. A aprendizagem é sempre mútua. Uma história pode sensibilizar ambos e uni-los de algum modo. “A grande palavra para o processo de mediação é intercâmbio. Há três mundos em um mesmo espaço – o mundo da narrativa, o do ouvinte e o do mediador. Juntar esses três universos e conseguir construir uma ponte entre eles é o principal interesse da mediação”, afirma José Roberto. Afinal uma das funções da literatura é nos fazer refletir sobre o ser humano e seus sentimentos.
Assim a mediação de leitura, uma prática cultural ainda pouco conhecida, vai aos poucos ganhando espaço no panorama paulista, difundindo e incentivando a leitura em diferentes contextos sociais.
Para saber mais
A Cor da Letra – Centro de Estudos em Leitura, Literatura e Juventude
Os Escritureiros – Aventureiros da Escrita de Parelheiros
Sistema Municipal de Bibliotecas
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