Da crise à criatividade
“Minha cozinha se transformou em um laboratório”, afirma Jaqueline Furlaneto das Neves ao avaliar sua trajetória com o filho Gabriel, de seis anos. Tudo começou quando o menino, aos dois, apresentou crises de cólica, dermatite, asma, infecções de ouvido e garganta, refluxo, rinite, fraqueza muscular e distensão abdominal. Nessa época, ele vivia à base de antibióticos e antialérgicos carregados de corticoide.
Numa das crises do filho, Jaqueline e o marido descobriram que o causador desses sintomas era o leite de vaca. Ouviram do médico um diagnóstico errado, mas infelizmente comum: o de que Gabriel tinha “alergia à lactose”. Passaram a dar ao menino alimentos sem lactose, o que não resolveu por conterem a proteína do leite.
Após uma crise de asma intensa, uma médica pneumologista fez o que nenhum profissional havia diagnosticado. “Ela nos explicou que o Gabriel tinha alergia à proteína do leite e, além do leite de vaca, também retirou o ovo, a soja e peixes da alimentação do nosso filho. A melhora foi tremenda, e a conclusão do diagnóstico de todas as alergias se deu quando ele já tinha três anos”, conta Jaqueline.
A partir daí ela e o marido passaram por uma grande reviravolta e a maturidade do filho foi surpreendente. “Uma vez fomos ao mercado e ele pediu um pacote de muffins. Não comprei, mas em vez disso comprei forminhas para fazer a receita sem leite, ovo e soja. Mas o do mercado vem com desenho, apela para o consumismo. Na hora em que coloquei o bolo na forminha plástica ele pegou um adesivo e colou para ficar igual ao do mercado. Ele teve a criatividade de pensar algo que não imaginei”, relata a mãe.
Jaqueline e o marido mudaram todos os hábitos alimentares. “Começamos a pesquisar receitas na internet e a primeira coisa que fiz foi um bolo sem ovo. Ficou horrível. Foram várias tentativas até chegar em uma que fosse comível. Fomos aprimorando e dessas experiências saíram pão, danone, tortas, etc.”, relembra.
Dentre os desafios enfrentados devido à alergia de Gabriel, ela menciona o despreparo da escola. Por medo de que o garoto comesse o lanche dos colegas, as professoras o isolavam na hora do recreio. Gabriel precisou faltar às aulas por quase um mês no período em que os pais ainda investigavam o que o deixava sempre doente. Ao retornar, Jaqueline comunicou o diagnóstico e as restrições do filho e, percebendo que não poderia depender de uma atitude inclusiva da escola, agiu para que o filho não fosse privado de qualidade de vida.
“A escola não tem preparo suficiente porque é mais fácil isolar a criança alérgica. O Gabriel se sentia tão isolado que uma vez fez xixi na roupa para chamar a atenção. No ano retrasado conversei com a professora sobre o dia do piquenique escolar e propus que nessa ocasião eu preparasse um bolo para a classe inteira, pois não queria ver meu filho excluído”, conta Jaqueline.
Ela também conversou com as outras mães sugerindo que mandassem frutas na lancheira dos filhos para que Gabriel pudesse comer. “Quando chegava o dia do piquenique, a classe do Gabriel ficava na expectativa porque sabia que eu iria mandar bolo para todos e ele chegava em casa contando sobre as frutas que os amigos tinham levado. Não foi apenas o meu filho o beneficiado, mas a turma toda”.
Atualmente Gabriel não pode comer nada que contenha leite e derivados, assim como ovo, soja e corante. O peixe, antes proibido, já está liberado, pois não causa mais alergia. Segundo a mãe, a qualidade de vida da família inteira melhorou com a alergia de Gabriel. “Com os alimentos que meu filho come ele tem a possibilidade de ser mais saudável do que muitas crianças que vivem de produtos industrializados como bolachas, refrigerantes e fast food. Qual criança na idade dele come tantos legumes, linhaça, aveia, quinoa?”, diz ela.
Jaqueline tem uma Fanpage no Facebook, a Alérgicos Saudáveis, que conta com mais de 6.700 curtidas. Ali ela divide experiências, receitas, alertas sobre a importância da inclusão social, fotos etc.
“É chocolate de alfarroba?”
Isaac tem três anos e, apesar da pouca idade, demonstra maturidade quando alguém oferece algo que ele não pode comer. “Eu sou alérgico” ou “Isso pode, mamãe?”. Sua mãe, Maria Alice Campagnoli Otre, sempre pensou em não excluí-lo do convívio infantil, mas incluí-lo com cuidado. “Meu marido e eu o educamos com carinho para que ele soubesse o que não poderia comer. Nas festinhas, a gente levava a marmitinha dele separada e desde um ano e pouco ele já sabia os alimentos que causavam alergia”. Entre risos e com voz de criança, ela imita outra resposta de Isaac quando alguém oferece chocolate, alimento proibido por ele ser alérgico a cacau. “É chocolate de alfarroba?”.
Mas se atualmente a alergia alimentar de Isaac é tratada com leveza, já foi motivo de dor de cabeça até que todos os testes fossem feitos. Maria Alice conta que o filho mamou exclusivamente no peito até os dez meses e depois disso passou a intercalar com uma mamadeira à noite. Quando começou a tomar leite comum apareceram sintomas como amigdalites, machucados e coceiras tratados à base de antibiótico.
Sobre a amamentação, a nutricionista Natália Torrentino Prosperi ressalta sua importância, pois quanto mais tarde a criança ingerir o leite de vaca menos chances terá de desenvolver alergia. “O leite materno defende a criança de todas as doenças, principalmente em relação ao sistema imunológico, como no caso da alergia. É o alimento mais completo que existe”, afirma. Mães que amamentam bebês alérgicos também devem fazer dieta abolindo o consumo do leite de vaca, derivados e alimentos que contenham traços de leite.
Por meio de exames, descobriu-se que Isaac era alérgico ao leite de vaca, banana, uva, mamão, ovo, soja, castanha, amendoim, nozes e cacau. Atualmente ele não é mais alérgico aos quatro primeiros. No convívio escolar, Maria Alice avalia que a alergia alimentar ainda é uma questão conflituosa. “Ano passado, Isaac lanchava sozinho na sala dos docentes porque as professoras tinham medo de deixá-lo com as outras crianças. Atualmente ele come na ‘mesinha do alérgico’ com crianças que também têm restrições alimentares. A escola falha por achar que é frescura”, explica.
Alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e Intolerância à lactose (IL)
A expressão “alergia à lactose” é incorreta, mas difundida em nível popular e até mesmo entre médicos. A alergia é provocada pelo sistema imunológico em relação à proteína dos alimentos ao passo que a intolerância se relaciona à dificuldade de o sistema digestivo processar a lactose (açúcar do leite) devido à diminuição ou ausência da enzima lactase. Os sintomas também se diferem, pois em casos de IL o incômodo é apenas digestivo, enquanto a APLV apresenta sintomas digestivos, cutâneos, respiratórios, dificuldade de ganhar peso e crescimento.
A fisioterapeuta Graziela Naliati, 27 anos, descobriu ser intolerante à lactose aos 24. Ela sentia cólicas fortes, diarreia, distensão abdominal e dor de cabeça sempre que tomava leite ou comia derivados. Após exames, cortou totalmente o leite de sua dieta, mas explica que consome um sachê de enzima quando quer comer alimentos com lactose. “Consumir a lactase ajuda, mas não resolve. Se eu ingerir muita lactose, mesmo com a enzima, sinto distensão abdominal e cólica”, diz.
Graziela conta que atualmente suas restrições alimentares não atrapalham a vida social, mas que no começo não foi bem assim. “As pessoas diziam para eu comer só um pedacinho, mas quem oferece não sabe o que a gente sente depois. Se vou à pizzaria e não levo minha enzima, peço para tirar o queijo ou opto por porções. Não tenho nenhum problema com isso, o mais difícil é saber falar não para as pessoas”, explica.
Natália Torrentino Prosperi defende a importância do diagnóstico de casos clínicos para que a lactose e/ou a proteína do leite sejam restringidas. “O Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (SP, MS) esclarece que o leite de vaca é fonte de nutrientes e que restringi-lo é uma medida que deve ser aplicada a pacientes que apresentam intolerância à lactose ou alergia à proteína do leite”, orienta a nutricionista. Descumprir tal diretriz, segundo Prosperi, é infringir o Código de Ética do Nutricionista (Resolução CFN nº 334/2004).
Prosperi admite que a indústria prejudica o potencial nutritivo de qualquer alimento e, no caso do leite, isso não é diferente. Quanto maior a validade de um produto, mais aditivos químicos ele tem. “O consumidor deve saber escolher, e a Anvisa precisa controlar a quantidade de elementos químicos, pois o leite é fonte de glutamina (aminoácido responsável pelo sistema imunológico), cálcio, vitamina D, A e magnésio”, ressalta.
Leis que protegem os direitos do alérgico alimentar
Jaqueline, mãe de Gabriel, vive há três anos uma batalha judicial. Ela não consegue receber gratuitamente do governo o leite em pó à base de aminoácidos da marca Neocate. Até os dois anos Gabriel conseguiria receber de graça, mas como a alergia foi descoberta aos três esse direito precisa ser mediado judicialmente. “A burocracia é grande para conseguir um advogado do Estado e no particular é muito caro. Atualmente desisti porque o processo é desanimador, mas penso em entrar de novo nessa batalha porque meu filho ainda precisa do leite”, diz Jaqueline.
A quantidade de nutrientes do Neocate é bem maior em relação aos leites vegetais. No entanto, cada lata chega a custar R$ 170 e dura uma semana. “Essa lata que tenho foi doação. Como não consigo comprar com frequência, intercalo com o leite vegetal que preparo em casa, mas o Gabriel precisa da fonte de cálcio e vitaminas do Neocate”.
Em 2007, no mandato de José Serra, o Diário Oficial do Estado publicou a Resolução SS – 336, de 27-11-2007, garantindo o acesso gratuito ao leite especial para portadores de alergia à proteína do leite de vaca. Ainda que a Secretaria de Saúde afirme que o Neocate não está na lista obrigatória de distribuição gratuita, a lei federal n. 8080 assegura no art. 2º que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.
Em novembro do ano passado a presidente afastada Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.552/2015, que regulamenta a Lei 11.265/2006, vetando a publicidade de alimentos infantis como papinhas, leites artificiais e mamadeiras. O objetivo é incentivar a amamentação, não permitindo que a publicidade interfira nisso. Segundo o Ministério da Saúde, os estabelecimentos terão um ano a partir da publicação do decreto para cumprirem a nova lei.
Realidade de mercado
Com 13 lojas espalhadas pelo Brasil, a empresa SOS Alergia está há 12 anos em Marília atendendo nas áreas de prevenção de alergias respiratória, de contato, alimentar e contra picada de insetos. A proprietária Sandra Matunoshita ressalta que são poucas as empresas que dão valor a esse tema e explica por que a demanda de produtos para alérgicos costuma ser mais cara que a oferta convencional. “A montagem do local e equipamentos específicos para produção, matéria-prima selecionada, mão de obra treinada e a venda em menor escala (enquanto vendemos uma caixa de leite de arroz o supermercado vende várias latas de leite Ninho) encarecem o custo para o consumidor final”, diz.
Maria Alice Campagnoli Otre, mãe de Isaac, percebe nitidamente a diferença de preço na hora da compra. “Se hoje eu pago R$2,50 no litro de leite, antes eu pagava R$18 reais no leite de arroz”, conta.
A mãe de Gabriel, Jaqueline Furlaneto das Neves, inventa possibilidades para amenizar os gastos com alimentos específicos para a dieta de seu filho. “Com relação ao iogurte, aprendemos a fazer o de inhame, que é rico em fibras e vitamina C”, explica. Ela finaliza com um comentário bem-humorado para enfatizar que as restrições do filho não são um problema: “Ninguém faz amigos bebendo leite”.