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Edição Especial – Junho de 2016

 

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Ilustrações de Carolina Reis | Foto: Acervo Pessoal

Ao ensaísta, filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin o que mais impressionava na moda era “sua espantosa capacidade de antecipação”. Se a moda reflete a história, o dia-a-dia e os costumes de uma época, a questão da fluidez de gênero vai abrir ainda mais discussão na atualidade.

A tendência é vista nas araras de lojas de fast fashion – como na última e polêmica campanha da C&A na qual os modelos, homens e mulheres, trocavam as peças de roupa entre si independente do gênero – e no ainda tímido aparecimento de marcas de roupas designadas para ambos os sexos no mercado. Como fenômeno social, a questão trans ganha maior visibilidade com mais e mais militantes das causas dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) no meio, e o número de modelos transgênero cresce nas agências. Levando a questão do masculino e feminino como uma construção mental e não se deixando estabelecer pelo biológico, os transgêneros vêm subvertendo a mentalidade de que o sexo precisa de definição.

O crescimento dessa visibilidade é animador porque tal panorama social é grave. O Brasil o país que mais mata transexuais no mundo, segundo a última apuração da Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero. A TGEU aponta que entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no país. Outro padrão observado é o da prostituição: em média 90% das garotas trans se prostituem em algum momento da vida. Por falta de instrução da família e sem um apoio social este é por vezes o único caminho encontrado por elas não só para sobreviver, mas também para financiar sua transição. A moda também é uma alternativa de trabalho para essas meninas e meninos.

A Questão On-line

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Joana Jordan, para Brendon Magno | Foto: Fernanda Figueiredo

Para a paulista Joana Jordan, 19 anos, a moda também foi importante para construir seu corpo e fazê-la se identificar como uma mulher. Nascida em Osasco, a DJ e Viner – usuária da famosa da plataforma on-line de vídeos curtos, facilmente assimilados pelo espectador – começou sua transição como drag queen na noite paulistana e conta que se sentia pressionada a escolher um gênero. “Gostava de sair à noite maquiada, mas usava uma maquiagem bem leve. As pessoas começaram a me cobrar uma posição, se eu era homem ou mulher. Foi me montando que virei a Joana”.

A transição da garota foi aceita por seus seguidores e foi sua fama na internet que proporcionou trabalhos como modelo; Joana nunca teve interesse em se agenciar. Acabou fazendo pequenos desfiles e ensaios fotográficos para alunos de moda e revistas eletrônicas e conta que foi contratada na maioria das vezes por ser transgênero. “Já desfilei para mostrar às pessoas da plateia que entre mulheres trans e cis – aquela que se identifica com seu sexo biológico – não têm diferença”. No desenrolar da entrevista também se lembra de preconceitos sofridos nos trabalhos. “Fui chamada para um desfile em uma faculdade com duas drag queens e três garotas transexuais. Perguntavam de quem eram os looks e o diretor do desfile: ‘Esse vai ser da trans loira’. Essa foi a diferenciação, não sabiam nem nossos nomes. Me senti desrespeitada”.

Ainda muito jovem, Joana vislumbra para sua carreira um futuro ainda nas redes sociais. “Meu projeto é abrir um canal no YouTube com conteúdo voltado para os transexuais. Tudo que eu aprendi sobre o universo trans foi pela internet”.

A questão nas agências

Ariel Moura, 18 anos, nasceu em Belo Horizonte e foi descoberta no Minas Fashion Trend, um dos eventos de moda mais importantes do Brasil. “Aos 15 anos assisti a um desfile no evento e o Júlio, meu booker, me convidou para ingressar na empresa como modelo andrógino do gênero masculino, mas aquilo não era interessante para mim”. Em vias de completar sua transição, Ariel recusou a proposta na época. Três anos depois o agente entrou novamente em contato com a garota a fim de contratá-la como modelo do sexo feminino. Ariel já é agenciada há nove meses.

A New Face – designação dada a modelos promissoras em início de carreira – é agenciada pela unidade mineira da Mega Model, uma das maiores agências de modelo do país, empresa com a qual tem um bom relacionamento. “Todo mundo lá sempre me tratou muito bem. Lá eles me tratam como a Ariel, uma menina”. Graças à carreira de modelo, Ariel fez uma participação no programa Amor e Sexo da Rede Globo, onde conheceu a modelo transgênero Lea T, uma das mais famosas do mundo e grande porta-voz da causa. “Ela foi minha referência, a primeira mulher trans que conheci quando era criança. Fiquei encantada com ela”, conta.

Com relação aos castings, Ariel sempre foi indicada pelo booker como uma menina e não necessariamente como uma menina transgênero, como em qualquer casting. E tem lidado bem com o preconceito. “Já rolou gente rindo em trabalho, piadinhas. Aconteceu de eu escutar. Falo com o Júlio e sempre tentamos resolver da forma mais pacífica possível”. O preconceito também está presente na escolha das modelos pelos contratantes. “Muitas vezes sei que não sou escolhida por ser uma menina trans. Não sou escolhida por ser boa ou má modelo, pelo meu manequim estar dentro ou não de um padrão. Sou rejeitada apenas por ser transgênero”.

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Ariel Moura | Foto: João Neto

As agências de modelo em si também estão mudando. Um exemplo disso é a Squad Agency, coletivo paulistano fundado por Thais Mendes e Patrícia Veneziano. Com modelos diferenciados de todos os gêneros, Thaís conta: “Simplesmente procuramos por pessoas interessantes e que fotografam bem, e acontece que muitas delas acabam se encaixando em certas categorias vistas como ‘fora de padrão’ dentro e fora da indústria”.

A agência conta atualmente com dois modelos transgênero. “A meu ver, eles são tão capazes de fazer uma campanha como qualquer outro modelo ou Digital Influencer. Acho que o Brasil ainda vai ouvir falar muito deles”.

Quando perguntadas sobre os privilégios que tiveram, como a aceitação das famílias e a oportunidade de trabalhar como garotas, tanto Joana como Ariel reconhecem que essa não é a realidade comum entre as transexuais. Ambas anseiam por um momento em que a sociedade reconheça as pessoas não como mulheres ou homens transgênero ou cisgênero, mas como qualquer mulher ou homem que se identificar como tal. “A moda é um meio que dá muito espaço para as diferenças. Gays, mulheres, meninas trans. É um meio que abre portas em prol das diferenças. Mas ainda temos muito caminho pela frente para ocupar o espaço que também nos é de direito”, Ariel completa. O lado bom dos tempos atuais – para todas as minorias – é que, por mais que a sociedade brasileira esteja caminhando para um viés mais conservador politicamente, as novas gerações dispõem de uma gama infinita de informação e estão interessadas em superar preconceitos e em se expressar do jeito que são. Eles moldarão o mercado do futuro. E a tendência indica que o futuro da moda será cada vez mais agênero.