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Edição nº zero – 2013

Obra do Kobra 1

Dentre os milhões de muros pichados, grafitados, pintados e com cartazes colados da cidade, desenhos em escala colossal de uma São Paulo de outrora, chamam a atenção de quem passa em meio ao tráfego caótico da Avenida 23 de maio. É a obra do Kobra. Distintos senhores e senhoras de chapéu em tons de preto, branco e cinza podem ser identificados de longe, mesmo que, de perto, as formas sejam simples, até mesmo desengonçadas, como um Monet que deve ser admirado com certa distância. Trata-se de um mural de mil metros quadrados (!), confeccionado para os 455 anos da cidade de São Paulo, parte da série “Muros das Memórias” que catapultou o paulistano Carlos Eduardo Fernandes Leo ou apenas Eduardo Kobra, 38 anos, para o estrelato da arte contemporânea brasileira – ou da street art, como Kobra prefere chamar. Kobra também prefere ser chamado de muralista; uma maneira de categorizar e facilitar a divulgação de seu trabalho, já que o mesmo transitou pela pichação e o grafite e, hoje, sua obra colorida, de grande apelo estético e de proporções homéricas (não é exagero – em abril de 2012 ele pintou uma caixa d’água de 50 metros de altura por 40 metros de diâmetro, no campus Santo Amaro do Centro Universitário Senac, zona sul da cidade) parece não se comunicar de forma simbiótica com outros trabalhos de grafite que estamos acostumados a ver pelas ruas. Isso porque o trabalho de Kobra se destaca, seja pelo tamanho, pelas cores vibrantes, pelo realismo quase fotográfico. É um mural. E um mural autorizado, às vezes pago, o que transforma sua arte em beleza politicamente correta ou até mesmo institucionalizada na visão dos grafiteiros e críticos de arte mais radicais. Mas talvez seja isso que diferencie Kobra dos outros milhares de artistas de rua. Sua obra não é marginalizada por grande parte da população que desconhece ou pouco sabe sobre os movimentos de street art; é bem quista, é procurada, tem apelo comercial; as pessoas gostam de ver e até compram suas telas! – que absurdo, não?

Ironias à parte é fato que a história de Eduardo Kobra poderia virar argumento de um folhetim, pois possui todos os elementos da trajetória de um herói: “Vim, vi e venci”. Criado no Campo Limpo, periferia sul da cidade, Eduardo teve uma infância simples ao lado de seus dois irmãos. Descobriu o gosto pelo desenho aos 7 anos de idade. Influenciado pela cultura hip hop, naturalmente migrou para a pichação com apenas 12 anos. Foi nas ruas, pichando, que veio a alcunha de Cobra, ainda com “C”. A família não aprovava a escolha do menino. Nem mesmo quando passou a grafitar. Queriam que Eduardo procurasse um trabalho, nas palavras dele “certinho, que garantisse meu futuro”. As inúmeras vezes em que foi detido pela polícia só reforçaram a desaprovação. Mas a paixão falou mais alto. Na década de 1980 ele descobriu o trabalho de grafiteiros nova-iorquinos, principalmente aqueles feitos nos metrôs e trens da cidade que revelou um dos maiores artistas do gênero, Jean-Michel Basquiat. Autoditada, Kobra passou a desenvolver seu próprio estilo e começou a procurar e estudar tudo aquilo que talvez nunca tivesse a chance de conhecer: Arte. Descobriu o próprio Basquiat, Keith Haring, Diego Rivera. Do Brasil, descobriu Cândido Portinari que faleceu intoxicado por chumbo, proveniente das próprias tintas que usava. Coincidência que atingiu Kobra que, pelos mesmos motivos, passou a desenvolver problemas de saúde e precisou adaptar sua técnica utilizando tintas solúveis em água, menos agressivas. E adaptação é o que moveu sua trajetória. Do muro descobriu que poderia usar outras plataformas para seu desenho, como a calçada, uma tela, lona de caminhão ou até mesmo objetos, como uma geladeira, um carro, seja com pincel ou aerógrafo. Nenhuma superfície, tamanho ou forma poderia deter seu desenho, que evoluía à medida que seu trabalho se tornava notório. Somente aos 27 anos Kobra entrou pela primeira vez em uma galeria de arte. Ele nunca imaginou que alguém pudesse pagar pelo o que fazia. E foi juntando dinheiro que em 1995 abriu seu estúdio, o Studio Kobra, onde passou a recrutar, ensinar e trabalhar com outros artistas. Artistas que tiveram uma vida simples como Kobra ou que enfrentaram dificuldades e carências; até ex-presidiários receberam uma nova chance através da arte. Mas segundo Kobra, “sem demagogia”: “Ninguém entra para o Studio Kobra simplesmente porque fomos bonzinhos. Pelo contrário, entram porque são ótimos artistas e em muitos aspectos sabem mais que eu, contribuindo demais para os trabalhos.”

Foi então que seu estúdio caiu nas graças de arquitetos que buscavam algo de diferente para seus projetos. Em pouco tempo Kobra e seus pupilos passaram a pintar interiores de estabelecimentos comerciais, como lojas e restaurantes, o que fez aqueles críticos e grafiteiros radicais torcerem o nariz. Até o arquiteto Sig Bergamin, conhecido pelos seus projetos refinados e rebuscados se rendeu ao charme de seu trabalho e criou um projeto em parceria para a loja Les Lis Blanc, reduto de moda para mulheres de alto poder aquisitivo. Kobra também já expôs suas telas na Galeria Romero Britto (outro artista, tão famoso e tão comercialmente bem-sucedido quanto) na badalada Rua Oscar Freire e já participou até da Casa Cor – neste momento seus críticos mais ferrenhos devem querer vomitar e fazem piadinhas com sua assinatura, como: “É Kobra, pois só sabe cobrar”. Mas o artista com jeitão de moleque (camisa xadrez, jeans, cabelos compridos e chapéu) não liga para isso. Ele ignora. Sabe que, no fundo, o que quase todos os artistas querem é reconhecimento. É poder pagar as contas só com seu talento, sem precisar ter que ouvir o clichê: “Nossa, ele é artista? Mas ele vive do quê?”. Kobra vive tranqüilo, obrigado. Pode se dar ao luxo de recusar trabalhos, principalmente se tiver, em sua visão, qualquer tipo de cunho preconceituoso ou que desrespeite a natureza ou a vida. Já pintou para grandes empresas como Coca-Cola, Nestlé, Samsung, Chevrolet, Ford, Johnnie Walker, Iódice. E são com esses trabalhos que Kobra faz grande parte de seus murais de rua que, ao contrário do que muitos pensam, não são patrocinados. Kobra diz fazer por amor à cidade de São Paulo. De fato, a cidade feinha e cinzenta ganha vivacidade com seus desenhos.

Mas a técnica de Kobra ultrapassou seus próprios limites. Quando influenciado pelo trabalho do artista nova-iorquino Eric Grohe, passou a desenvolver pinturas em três dimensões. Grohe também faz murais, mas seu diferencial é o fantástico emprego da perspectiva – que vai muito além da técnica que começou a ser usada no Renascimento, com o ponto de fuga. Grohe trabalha com dimensões, volumes; sua pintura parece saltar do plano… plano. Assim, Kobra começou a pintar nas calçadas, imagens que, de perto (lembram-se do Monet?), não parecem ter sentido algum, mas que, de certos ângulos, pulam sobre o espectador, como se pudessem ser tocadas. A destreza de Kobra surpreendeu e, em 2011, no Sarasota Chalk Festival, na Flórida, Estados Unidos (considerado o maior evento de 3D do mundo), entre duzentos participantes, foi premiado entre os vinte melhores. Kobra se tornou o precursor da técnica no Brasil. Mas não é só a Flórida que conhece e admira os desenhos de Kobra. Seus trabalhos ultrapassaram os muros de São Paulo direto para Londres. Também podemos reconhecer seus traços em Lyon, Moscou, Lisboa e até em Atenas. Nova Iorque, local importante na vida do artista devido suas influências, não poderia deixar de ter um mural “Kobrístico”: “Explosão de Amor” foi o nome dado a pintura que resgata a famosa fotografia de um marinheiro beijando uma enfermeira em 1945, logo após os Estados Unidos vencerem o Japão na Segunda Guerra Mundial. Kobra humildemente reconhece que os grafiteiros Otávio e Gustavo Pandolfo, mais conhecidos como “Os Gêmeos”, foram essenciais para abrir o caminho para os demais artistas brasileiros. Agora, Kobra se junta ao artista Thierry Guetta, mas conhecido como Mr. Brainwash. A parceria, frutífera, resultará em um ateliê na cidade de Los Angeles.

Mas mesmo internacional e nacional (pois o projeto Muros da Memória também está em cidades como Rio de Janeiro, Santa Catarina e Belém do Pará), não dá para dissociar Kobra de sua terra natal. São Paulo é sua musa inspiradora. Mesmo conhecendo outros lugares ao redor do mundo e abrindo o ateliê em Los Angeles, Kobra não quer deixar a capital paulista: “Aqui será sempre o meu centro e o local que preciso para reciclar, para encontrar meu eixo. Não dizia o escritor russo Leon Tolstói que ‘universal é o homem que escreve sobre a própria aldeia’?”. E Kobra escreve muito bem. Os moradores de São Paulo podem apreciar, como que em uma galeria a céu aberto, um circuito com dezenas de murais pintados pela equipe Kobra, que passam pelo centro, Pinheiros, Butantã, Vila Madalena, Morumbi. É possível ver grandes nomes da música brasileira retratados, como Carmen Miranda, Chico Buarque e Adoniram Barbosa. Ou então uma homenagem ao arquiteto Oscar Niemeyer, em plena Avenida Paulista. Outro tema que toca o artista é a questão ambiental. Em um trocadilho com o nome do grupo Greenpeace, Kobra decidiu fazer o “Greenpincel”, onde denuncia através da arte, a destruição da natureza pelo homem e as conseqüências de seus atos à saúde do planeta. Na Rua Domingos de Moraes, na zona sul, é possível ver uma cena de caça às baleias na Ásia, já na Avenida Rebouças, um mural intitulado “CO2”, mostra enormes chaminés de indústrias expelindo fumaça. Ainda é possível ver críticas às touradas na Espanha, à usina de Belo Monte e à prisão da ativista brasileira do Greenpeace na Rússia.

Mas a São Paulo antiga que mostra como eram o Porto de Santos, a Rua Direita ou a Avenida São João, nas décadas de 1920, 30, são as que mais atraem os olhares daqueles que nunca viveram a época de cidade tão diferente. Atrai também aqueles que viveram essa época, oferecendo a experiência de “revivenciar” e reverenciar. O ponto de partida para esses murais de temática tipicamente paulistana surgiu quando Kobra leu sobre os últimos casarões ainda em pé da Avenida Paulista. Surgiu assim uma imensa vontade de resgatar a arquitetura que estava pouco a pouco desaparecendo. Para ele, esses murais são, na verdade, portais que levam o espectador a uma cidade que não existe mais. É a possibilidade de trazer vida a imagens que ficam guardadas dentro de bibliotecas: “Queremos despertar a noção da importância do patrimônio histórico nas pessoas”, diz o artista que, se o tempo não apagar, também terá criado seu próprio patrimônio histórico-artístico.