“Cinema na favela? Só se for de filmes pornôs.” Caçoou uma vizinha quando em 2003 um grupo de moradores de Heliópolis começou a rodar filmes pelas quebradas do lugar. Mas no cinema de Heliópolis não há sexo explícito. A vizinha teve que se redimir anos depois. É que o próprio filho dela se tornaria um dos cineastas da favela. “Foi perdoada”, conta Reginaldo de Túlio, um dos fundadores do Cine Favela e o único do grupo original que ainda trabalha na associação. “Quando o pessoal viu que não ia dar dinheiro, foi pulando do barco”. Hoje a Associação Cultural Cine Favela tem oficinas de cinema, teatro além de aulas de karatê, capoeira e boxe. “A meninada fica muito na rua, por isso decidimos ter oficinas esportivas para preencher o tempo deles”.
Heliópolis está localizada em uma ponta da zona sul de São Paulo que faz divisa com a cidade de São Caetano do Sul. É uma das maiores favelas da capital paulista com quase duzentos mil moradores. São milhares de casinhas de tijolo sem acabamento, encostadas umas nas outras e recortadas por pequenas vielas, as quebradas onde carros, caminhões, motos e bicicletas dividem espaço com pedestres e crianças que jogam bola e soltam pipas. A favela está urbanizada, tem asfalto, luz, coleta de esgoto em quase todas as casas. São quase três mil pontos de comércio, a maioria dentro das próprias casas dos moradores. A favela começou como todas: uma invasão. Em 1970, a prefeitura desapropriou outras favelas na região para a abertura de novas vias. “Quando eu cheguei aqui era só lama e barracos. Tinha gente que criava patos, porcos, eram como sítios. Teve um período de muita violência, vi tanta coisa feia que nem gosto de lembrar”. Reginaldo é paranaense da roça e veio trabalhar no ABC no início da década de 1980. Acabou construindo a vida na favela. Apaixonado por cinema, quando criança sonhava em trabalhar em Hollywood, nos Estados Unidos. Ao crescer, resolveu que faria a própria indústria do cinema com as ferramentas que tinha nas mãos: vontade, criatividade e cara de pau. “Hoje Heliópolis é um bairro educador”, diz Reginaldo citando várias outras iniciativas de moradores, tão engajados quanto ele que lutam por escolas de qualidade, projetos de moradia e acesso a atividades culturais.
O carro chefe da Associação é o Festival Cine Favela de Cinema, que nasceu em 2005 como uma pequena mostra de filmes e já está na oitava edição. Desde 2010 rompeu os muros de Heliópolis e é exibido em sete comunidades populares, em estações do metrô, no Museu da Imagem e do Som, no Memorial da América Latina e em unidades do SESC. “É o maior evento difusão de cinema periférico do mundo, mesmo assim a gente encontra uma enorme dificuldade de encontrar empresas que queiram atrelar sua marca a um evento que acontece em comunidades populares”, reclama Daniel Gaggin, diretor e um dos parceiros do projeto. O festival de 2013 teve mais de 500 filmes inscritos do Brasil e de mais sete países. “Sem verba a gente não consegue manter uma equipe o ano inteiro trabalhando em prol do festival. Quem pode ajuda nos finais de semana, nos dias de folga. É um sufoco”. Fechar as contas exige malabarismo. A sede do Cine Favela fica em um antigo bar na rua do Pacificador, no miolo da favela. O prédio é alugado, pago com dinheiro arrecadado pelos moradores, pelo Reginaldo e com a ajuda de apoiadores privados que nem sempre aparecem. É uma luta manter o espaço pequeno, com cadeiras de plásticos e uma tela branca ocupando a parece dos fundos. É lá que os filmes feitos pelos moradores são exibidos em sessões de graça.
O último longa acaba de ser lançado, Lá em Heliópolis é o resultado de um ano inteiro de oficinas de cinema. São aulas práticas de câmera, iluminação, edição, fotografia, roteiro e atuação. “É um filme de realismo fantástico sobre uma lenda urbana de Heliópolis. Um cantor de ópera morre atropelado, no rádio tocava um funk. Essa alma reaparece para assombrar os moradores sempre que a mesma música toca três vezes. Uma coisa de louco”, resume Donizete Bomfim dos Santos, diretor cultural da associação e uma espécie de faz tudo do lugar. Donizete foi criado em Heliópolis, aluno de uma das oficinas, foi ficando e ficou. “Já fui até para a Holanda apresentar peça de teatro, o Cine Favela é a minha família”.
Foi Donizete quem mais ajudou no novo filme. O longa foi rodado de uma vez só, em um único dia. Foi uma correria muito grande e na pressa nem deu para montar o elenco com antecedência por isso os atores foram sendo recrutados durante as filmagens. A mãe de Donizete, a dona de casa Maria de Lurdes dos Santos, de 58 anos foi uma dessas atrizes de última hora. No filme ela é uma perua, “ela usava uns colares, era bem brega”, lembra ela rindo ao descrever a personagem. Apesar do improviso tanto na fala, quanto nos figurinos, Maria não é inexperiente. Já participou de outros filmes do Cine Favela, atuou em peças de teatro e hoje é chamada para fazer figuração na série A Mulher do Prefeito, exibida pela Rede Globo. “Meu filho tirou umas fotos de mim, aí o rapaz me chama de vez em quando. Mas é figurante, é um monte de gente lá em Barueri. É gostoso, converso com um aqui, outro ali e o tempo passa. Melhor do que ficar em casa pensando bobagem”, conta.
Em uma dessas abordagens em busca de atores de última hora, o bicho do cinema picou o metalúrgico Edson Alves. Ele também fez uma ponta no filme e ficou tão empolgado que assim que terminar o ensino médio em um supletivo pretende fazer faculdade de artes cênicas. Os amigos brincam, pedem autógrafos, mas ele não liga. “Fiquei um pouco nervoso na hora, depois acostumei. Essa experiência mudou o meu sentido de viver.”
Reginaldo de Túlio não sabe ao certo quantas pessoas da favela foram contaminadas pelo cinema, mas sempre que alguém demonstra interesse ele é o primeiro a estimular. “Tem várias pessoas aqui que estão tirando o DRT, o registro profissional. Então isso é legal, muito bom para essa galera toda e para outros que vêm depois. A gente só dá o pontapé inicial e o resto é com ele depois”.
Os profissionais da favela já têm conseguido trabalhar em produtoras, atuar em outros filmes. O Cine Favela também atraiu gente famosa para a comunidade. A cineasta Laís Bodanzky, do premiado Bicho de Sete Cabeças, dirigiu o curta Uma Nota Só, durante o Festival Cine Favela de 2012. O filme sobre o trabalho do Instituto Baccarelli, uma organização que oferece ensino de música erudita para crianças e jovens de Heliópolis, foi feito com os alunos formados nas oficinas do Cine Favela.
Por falta de verba, o Cine Favela só consegue organizar uma turma por ano com cerca de quinze alunos que fazem todas as oficinas de cinema. “Eu tenho um caderno lá em casa com nomes de pessoas que querem filmar aqui. As oficinas de cinema têm lista de espera, todo dia alguém me para na rua e pede para participar de um filme”, lamenta Reginaldo. Ele também reclama da falta de apoio do poder público; uma reivindicação antiga da associação é um espaço maior para as atividades culturais e esportivas. O principal argumento para os pedidos de dinheiro público é a educação. “A educação vem através da cultura e cultura traz muitos ensinamento, tanto na área de cinema, como teatro e outras atividades. As pessoas se tornam diferentes, o jeito de viver com o outro muda, elas têm mais respeito. As pessoas podem estar em locais onde jamais imaginaram estar, como uma sala de teatro bacana, um cinema bacana”.
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