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Edição nº zero – 2013

A chuva forte, em uma tarde de sábado, é dificilmente capaz de cancelar uma partida de futebol. Mas, no caso da várzea, as dificuldades são evidenciadas a cada gota que cai. O campo no bairro da Lapa, majoritariamente formado por terra e com alguns poucos espaços onde a grama resiste, torna-se lama em pouquíssimo tempo, e faltando cerca de dez minutos para começar a partida, apenas uma das equipes encontra-se completa para a disputa. O Vai que Vai 100% é um time formado há quatro anos e que, entre um e outro churrasco no Brás, montou uma equipe competitiva que jogará pelo bicampeonato do torneio Futliga. Enfrentarão um escrete que, apesar de compartilhar o amor pelo futebol, se difere em muito em relação às inspirações e aos objetivos acerca do esporte.

Fundado em 1º de Maio de 2006, o Autônomos F.C. é um clube anarquista que pretende combinar elementos aparentemente distantes: o futebol, que é muitas vezes considerado o ‘’ópio do povo’’, e o ativismo libertário. Não somente em seu belo uniforme rubro-negro (que remete à bandeira anarco-sindicalista) ou em seu tradicional distintivo representado pelo A maiúsculo dentro do círculo. O clube se organiza de forma horizontal e autogestionária, e mantém como prioridades os princípios de antirracismo, anti-fascismo, anti-machismo e anti-homofobia. Acima de tudo, utiliza-se de seus aparatos para proclamar o repúdio ao futebol moderno e ao sistema capitalista, assim como a tudo aquilo que deriva da mercantilização desenfreada do esporte.

A ansiedade está escancarada no rosto dos jogadores do Vai que Vai 100% – o jogo não é uma final, mas vale um título em caso de vitória. Já estão devidamente vestidos e realizando o aquecimento. Do lado do Autônomos, alguns jogadores ainda estão presos no implacável trânsito de São Paulo. Danilo Cajazeira, o Mandioca, é um dos fundadores do clube e já se encontra no recinto. Como solução, faz algumas ligações e recruta membros do Quadro B (espécie de time reserva) que acabavam de jogar em outro campo da cidade. A partida, inevitavelmente, terá de ser atrasada em alguns minutos.

Em seus primeiros dias de vida, ainda jogando na modalidade Society, o Autônomos completou quase um ano sem vencer um único jogo. Fundamentalmente, aquilo que os motivava estava além do resultado dentro das quatro linhas. Com sua proposta agregadora, aceita qualquer jogador que esteja de acordo com seu perfil ideológico e seu caráter subversivo. Após sete anos de luta, o time conta com mais de 40 atletas, divididos entre as equipes masculina, feminina e de futebol de salão.

Entre seus maiores feitos, a participação na primeira Copa do Mundo Alternativa, em 2010. Realizada na Inglaterra, contou com clubes libertários de todo o planeta. O Autônomos viajou com uma comissão de 26 atletas, em uma experiência que, segundo eles, foi digna de filme. Não realizaram uma grande campanha na competição, mas na bagagem trouxeram duas idéias que mais tarde se tornariam realidade. A primeira delas foi a criação da sede do clube, a Casa Mafalda. Hoje funciona como um espaço de gestão aberta, servindo de laboratório para práticas culturais e sociais livres de opressão e exploração. Oferece exposições, oficinas, debates, cursos livres, ensaios e mostras. Também conta com uma biblioteca que prioriza os estudos do futebol e da política. A segunda idéia foi a criação da Copa América Alternativa, organizada dois anos depois, na Argentina, em conjunto com uma equipe local. E o resultado não poderia ser melhor: o Autônomos sagrou-se campeão.

Agora que os dois times estão em campo, abraçados e pronunciando seus gritos de guerra, a chuva parece dar trégua e apenas uma leve garoa continua presente. O campo, entretanto, ainda está molhado, e não demorará muito para que os uniformes ganhem a coloração da terra. O sol se recusa a aparecer e o jogo se inicia com toques de drama. Fazendo jus a seu título sul-americano, o Autônomos geralmente se utiliza da uma postura tática característica do nosso continente: a vontade e a entrega em detrimento de um futebol vistoso ou individualista. De acordo com os jogadores, não há uma ação intencional de aplicar conceitos ideológicos às estratégias de jogo, mas existe uma constante troca de influências. Defender para depois atacar – essa parece ser uma máxima da militância política que acaba por refletir dentro de campo.

O nervosismo parece mesmo influenciar o desempenho do Vai que Vai 100%. Muitos passes errados, faltas desnecessárias e discussões entre os próprios jogadores. Em um erro na saída de bola, Boça, o ponta-esquerda do Autônomos, aproveita a oportunidade, ganha do zagueiro em velocidade e chuta rasteiro para abrir o placar. A comemoração é grande e faz o time anarquista acreditar que é possível vencer o forte adversário. O jogo segue com poucas chances de gol, muito combate no meio-de-campo e recorrentes reclamações sobre a arbitragem. Nos últimos instantes do primeiro tempo, Mandioca cobra o escanteio com perfeição na cabeça do volante Renato. A bola flutua até o canto oposto da meta e encobre o goleiro adversário, que fica sem reação. Um lindo gol. Fim do primeiro tempo, 2 x 0 para o Autônomos. Mandioca sai de campo sorridente e com o punho em riste.

Quando Mandioca surgiu com a idéia do time, a fusão entre futebol e política não era novidade em sua vida. Corintiano fanático, professor de Geografia (formado pela Universidade de São Paulo) e baterista, participou de dezenas de bandas punks desde sua adolescência. Uma delas, o Fora de Jogo, já abordava os assuntos que mais tarde se tornariam centrais na formação do Autônomos. Em um episódio curioso, Mandioca se encontrava no Poupa-Tempo para a emissão de uma segunda via de seu RG. Estava trajando a camisa de seu time do coração e foi alertado de que não era permitido tirar a foto da identidade com tal vestimenta. Após algum tempo contrariando tal regulamentação, teve de se deslocar a uma loja próxima e voltou com uma nova camiseta. Na hora de assinar seu documento, porém, não teve dúvidas: escreveu suas iniciais seguidas de um legível e chamativo ‘’Corinthians”.

O time mais popular da cidade de São Paulo também tem, curiosamente, uma história de luta e envolvimento político. Fundado por um grupo de operários do Bom Retiro, o Corinthians teve como proposta romper as amarras elitistas que compunham o cenário futebolístico do início do século passado. Em um esporte estritamente praticado pela classe mais favorecida, foi o primeiro a admitir negros, mulatos e caboclos em suas equipes. Possuía um forte compromisso com a popularização e a democratização do futebol, e não por acaso rapidamente conquistou a simpatia do proletariado. Seu primeiro presidente, Miguel Battaglia, proferiu a cândida, mas também desafiadora frase que guia a nação alvinegra até os dias de hoje: ‘’Este é o time do povo, e é o povo que vai fazer o time’’. Já no início da década de 80, deu-se a experiência da Democracia Corintiana. Em um momento de agitação (das greves do ABC ao Movimento pela Anistia), o país almejava a abertura política e os novos ares de liberdade. Contando com uma geração de jogadores politizados que incluía Wladimir, Zenon, Casagrande e o influente e culto Doutor Sócrates, foi instituído no clube um regime interno baseado na democracia direta. O time estampava em sua camisa frases em apoio às “Diretas Já” e obteve sucesso dentro e fora de campo.

No entanto, nem mesmo um clube de raízes populares foi capaz de se manter distante de uma nova ordem administrativa. Formava-se na Europa, ao final dos anos 80, um modelo gerenciado por meios privados que mais tarde se consolidaria no polêmico e contestado futebol moderno. Tornando-se um meio ultra eficiente de gerar receitas, dissolve aos poucos (e sem piedade) as tradições e costumes que por muitas décadas moveram o esporte mais praticado do mundo. Clubes viram empresas, os salários se tornam astronômicos, os estádios são descaracterizados. A organização da Copa do Mundo de 2014 é o perfeito exemplo de como o sistema capitalista tende a incorporar e usufruir daquilo que um dia já coube como manifestação legitima da cultura popular. Muitas famílias foram desapropriadas por conta das obras que, além de serem superfaturadas, serão administradas por consórcios. Como conseqüência, os preços exorbitantes de ingressos e uma verdadeira gentrificação (isto é, um processo de enobrecimento artificial) nos estádios. A morte de operários em três diferentes construções para a Copa do Mundo (Manaus, Cuiabá e São Paulo) atenta para quem está pagando a conta desse modelo ganancioso.

Nesses dias em que o amor à camisa é cada vez mais raro, o Autônomos retorna ao segundo tempo cantando hinos de resistência. E, apesar da chuva ter voltado a cair forte, o jogo recomeça bem mais movimentado do que na primeira etapa. Não demora muito para que todos presenciem um lance digno de futebol profissional: a bola sobra na risca da grande área, e o habilidoso meia Eduardo, do Vai que Vai 100%, acerta um espetacular chute de bicicleta. A bola estoura na trave e volta para o centroavante Téo, que apenas encobre o goleiro já caído no chão. A beleza e a raridade de um gol deste porte só não são maiores do que a motivação gerada no time do Brás, que agora só precisa de mais dois gols para se sagrar campeão. Mas é aí que entra o espírito guerreiro do time libertário. A retranca é formada, e sua defesa se torna praticamente imbatível. Muita disposição, garra e chutões para o mato asseguram a vitória inédita contra um time reconhecidamente superior.

O sol, tímido, ameaça comemorar junto com o Autônomos. Vários abraços e a sensação de dever cumprido. O anarquismo, neste sábado muito bem representado dentro de campo, também aspira por resultados nas ruas, em tempos de esgotamento de quase todas as possibilidades de lideranças partidárias. O futebol, com sua natureza inclusiva, certamente marcará presença.