De tão comentada, a série britânica Black Mirror já se tornou até uma expressão utilizada nas redes sociais quando se quer referenciar algo pesado e talvez meio bizarro: “Nossa, isso é muito Black Mirror”. Criado por Charlie Brooker e produzido pela Zeppotron, o seriado aborda a relação entre o homem e a tecnologia e mostra como isso pode resultar em um mundo funcional e prático ou em um verdadeiro inferno. Pode-se dizer que os episódios contêm picos de sensacionalismo e situações de tirar o fôlego, mas que nos fazem refletir.
Composta por três temporadas e apenas treze episódios – um diferencial diante do padrão de séries que se estendem com cerca de dez episódios por temporada –, Black Mirror se apresenta de maneira ”rápida e massacrante”. E a cada novo episódio tudo muda: os atores, a trama, o set de filmagem, a realidade vivida no roteiro. Característica que deixa o programa ainda mais instigante, pela complexidade da produção e pelo fato de que nem sempre dá tempo suficiente de construir uma história com começo, meio e um final – muito menos um final feliz. Os 45 minutos de um episódio são suficientes apenas para nos transportar até uma realidade que causa certo desconforto. É o que comenta o próprio Brooker quando diz que cada episódio é diferente um do outro, “mas todos falam sobre a forma como vivemos agora – e a forma como poderemos estar vivendo em dez minutos, se formos desastrados.”
Em 2012, no ano de lançamento da série pelo canal de televisão inglês Channel 4, o autor comentou a escolha do título: “Se a tecnologia é uma droga – e parece mesmo ser uma – então quais são precisamente os efeitos colaterais? Este espaço – entre apreciação e desconforto – é onde Black Mirror, minha nova série de televisão, está localizada. O ‘espelho negro’ do título é um que você encontrará em todas as paredes, em todas as mesas, na palma de toda mão: a fria e brilhante tela de uma TV, um monitor ou um smartphone.”E se em 2012, deparar-se com as histórias da série já despertava medo do que está por vir, em 2016, ano em que o seriado foi comprado pelo Netflix pelo valor de 40 milhões de dólares, esta sensação aumentou ainda mais. Afinal, em quatro anos muita coisa aconteceu. Muitos projetos tecnológicos evoluíram. Novas máquinas foram inventadas. E pessoas mostraram não ter o mínimo bom senso ao se encontrar em um contexto de luto, ciúmes no relacionamento, disputa por poder ou mesmo na hora de escolher um candidato para votar nas eleições, situações estas abordadas ao longo das temporadas.
No episódio da primeira temporada, por exemplo, o “The Entire History of You” – em português “Toda a sua História” – um casal vive uma realidade em que as pessoas registram tudo o que vêem em um microchip inserido no pescoço e é possível acessar a memória de qualquer momento da sua vida e mostrá-la para outras pessoas. Uma ‘facilidade’ que complica bastante a vida do casal que enfrenta um momento de insegurança no relacionamento. Para quem acha que nada pode ser pior do que a falta de privacidade causada pelo Facebook nestas situações, mal sabe que a realidade da série pode estar prestes a acontecer. Há dois anos a Sony vem trabalhando na produção de lentes de contato que filmam, reproduzem e armazenam vídeos. A expectativa é de que os “olhos inteligentes” atendam aos comandos do usuário, que podem piscar os olhos para apagar ou armazenar uma memória, algo muito semelhante ao que acontece na trama. Este episódio chamou a atenção de Robert Downey Jr, que o escolheu para ser transformado em um filme pela Warner Bros e sua produtora, a Team Downey. Atualmente o filme se encontra em fase de produção.
Na segunda temporada, o episódio “The Waldo Moment” – traduzido para “Momento Waldo” – brinca com uma situação em que o personagem de um urso, que participa de um programa televisivo de comédia, ganha tanta popularidade que acaba se candidatando a um cargo político. É como se o Louro José, o papagaio fantoche de Ana Maria Braga resolvesse disputar as eleições. Algo que parece surreal, mas que, se comparado com casos como o de Tiririca, não soa tão distante de nós assim.
Esta necessidade de falar sobre a tecnologia e tentar adivinhar até onde ela pode nos levar é um assunto que já se tornou obsessão da cultura de massa há muito tempo. Julio Verne, o segundo autor mais traduzido no mundo, foi um dos que arriscou muitas previsões futurísticas e acertou muita coisa. Se o phonotelephote, um aparelho que permitia a transmissão de imagens por meio de espelhos sensíveis ligados por fios – descrito em 1889 em uma de suas famosas obras – parecia coisa de um futuro tão longínquo, hoje ele já é uma realidade e se chama vídeoconferência. Isac Asimov, outro conhecido autor de ficção científica, também previu em 1964 algumas peculiaridades do mundo contemporâneo como os móveis de cozinha que esquentariam a água e a transformariam em café, as conhecidas cafeteiras de hoje. Mas a previsão de Asimov que mais incomoda são a dos robôs. Ele afirmou que em 2014 estes não seriam comuns e nem muito bons, mas já existiriam.
Se a previsão de Brooker for tão precisa, as pessoas podem passar a ter sérios problemas para lidar com a perda de um ente querido. No episódio “Be Rigth Back” – traduzido para “Volto Logo” – uma mulher perde seu marido, e para amenizar a saudade, recorre a um programa que se comunica com ela como se fosse o próprio companheiro – as informações como o jeito de falar, as expressões e o timbre da voz são obtidas pelos perfis um dia criados pelo falecido na web. Mas uma opção mais ‘evoluída’ desse aplicativo envia para a casa da personagem principal um robô idêntico ao marido que morreu e programado para agir de acordo com o que ela disser. Uma situação que acaba transformando o luto da mulher, que deveria ser passageiro, em uma situação eterna.
O choque despertado em quem assiste Black Mirror é causado quando se percebe que algumas situações descritas são tão estranhas, mas ao mesmo tempo tão passíveis de acontecer. Seja pela tecnologia próxima a da realidade atual, ou por comportamentos humanos ambiciosos, egoístas e fáceis de encontrar por aí. É neste ponto que a discussão da série divide opiniões. Alguns, adeptos da expressão “o meio é a mensagem” de Marshal McLuhan, defendem a ideia de que o poder transformador da mídia está na própria mídia – e não na mensagem que ela transmite – e que a tecnologia é determinante em nossas atitudes. Ou seja, sem ela, jamais nos veríamos em meio aos contextos estranhos do seriado e, se algum dia chegarmos a esse ponto, a culpa terá sido do avanço tecnológico desenfreado. Já outros acreditam que as máquinas nada mais são do que uma extensão da real vontade dos homens. Uma espécie de condutores de possibilidades e formas como as pessoas interagem, dando suporte ao que há de melhor e pior na sociedade.
Black Mirror nos inspira a pensar em como atualmente tendemos cada vez mais a usar a tecnologia para dar vazão a ‘nóias’, ao invés de usá-las para resolver as limitações humanas. Dessa forma, os “espelhos negros” se tornam uma forma de por em prática emoções, crenças e valores que parecem deveras arcaicos e contraditórios diante de tamanha modernidade e que estão longe do que sonhamos para um “mundo ideal”. O inferno está a um passo de acontecer, esperando apenas por um descuido.
Serviço:
Black Mirror
Série disponível no Netflix
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