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Edição nº 2 – Dezembro de 2014

Viaduto do Chá, São Paulo: década de 1970 | Crédito: divulgação

Viaduto do Chá, São Paulo: década de 1970 | Crédito: divulgação

Uma portinha enferrujada na Barra Funda. Atrás, um universo à parte. Sentado sobre um estofado vermelho, daqueles que exalam vivência e poeira, ele me abre um sorriso tímido, como se estivesse prestes a entrar em uma sessão de psicanálise freudiana. De fato, eu também estava lá para interpretar seus sonhos e pensamentos, que nitidamente comunicavam uma histeria contagiante pelo mundo da luz. Luz fotográfica que, para ele e tantos outros, atravessa o furo da alma e obtura a dor. Que exprime seus sentimentos dando corpo ao impalpável.

Desde os 12 anos de idade, Carlos Moreira, com seu olhar esfomeado, já revelava tamanha inquietação pelas representações visuais e pela essência urbana. Na adolescência, fugia de casa para caminhar pelo centro, pois lá tinha a sensação de estar despindo a cidade e se abrindo para o lado mais cru da sociedade. Essa sensação de liberdade e desprendimento esteve presente durante toda a sua vida e, muitas vezes, foi a inspiração em seus trabalhos.

Aos 20 anos, Carlos decidiu se afastar da casa dos pais para morar em Miami, onde iniciou o curso de engenharia, que foi logo trocado por psicologia, o qual também não chegou a terminar. “Era difícil estudar morando na praia”, relembra ele, com um sorriso sagaz. “Vivia livremente, sem a pressão direta dos meus pais, me alimentando de cultura, de Fellini, Antonioni, do que realmente me interessava.”

Trocou Miami por Nova Iorque e Nova Iorque por São Paulo – obrigatoriamente, após receber uma convocatória para o exército americano. Começou a fazer filosofia na Universidade de São Paulo e logo trocou para o curso de Economia, no qual se formou, sobretudo, para acalmar seus pais em relação a sua vivência nômade. Sem rumo ou interesse, Moreira nunca conseguiu se adaptar a nenhum ambiente empresarial em que trabalhou. Não se esforçava para realizar o que era solicitado, pois simplesmente não via sentido naquela rotina profissional.

Em 1964, aos 28 anos, enfim libertou-se. Mesmo diante de tantas incertezas do seu futuro, decidiu largar o que já estava estabelecido para assumir sua maior paixão, a fotografia. Foi quando começou a sair pelas ruas, afinar seus sentidos, registrar o belo, o curioso, o inusitado, por suas viagens a cada dia. Para ele, foi nesse contato com a cidade que sua alma de artista se desenvolveu. Foi lá que seu olhar se abriu com fagulhas de luz, que sua perspectiva irracional foi aguçada, fazendo da fotografia uma solução de vida.

Assim sendo, entrou no curso Foto Cine Clube Bandeirantes, mas logo largou, já que não se sentia enquadrado no perfil normativo da escola. Procurava uma maneira mais livre de fotografar. Foi quando formou um grupo chamado Novo Ângulo, onde finalmente pôde desenvolver seu estilo autônomo. Sua primeira exposição ocorreu em 1968 na biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, quando finalmente sentiu que seu trabalho pessoal estava estabelecido e havia sido reconhecido.

Com grande influência do renomado fotógrafo Cartier-Bresson, Carlos começou a enxergar a possibilidade de se relacionar com os ambientes externos e de viajar pelo mundo em nome da fotografia. Passou pela Índia, Japão, Estados Unidos, França, Itália, principalmente nas grandes metrópoles. Quando voltava para São Paulo, registrava o centro urbano, mas com um olhar imaginário composto das outras cidades que vivenciou. Conseguia extrair das suas imagens a essência dos lugares por onde já havia passado. Com um traço apolíneo, também visto nos recortes bressonianos, Moreira manteve a mesma linguagem artística até 1980, concentrada na questão da estruturação clássica do retângulo.

Crédito: divulgação

Crédito: divulgação

Após esse período, começou a desenvolver uma linguagem artística mais subjetiva, devido aos novos referenciais que entraram em evidência. Atualmente, o artista busca uma expressão mais voltada para a individualidade. Ele comenta: “O escritor D.H. Laurence compara a arte tradicional com a moderna. A tradicional, sendo a representação da lua em um céu estrelado. A moderna, sendo essa mesma lua refletida na água ondulante da subjetividade individual. É essa expressão que atualmente tenho tentado seguir.” Para o fotógrafo, toda metrópole possui uma dureza afiada que exige um certo cuidado. Isso acaba causando uma cicatriz tanto na cidade como nos habitantes. É justamente essa cicatriz urbana que ele procura registrar.

A essa altura, coberto por uma manta xadrez, Carlos parecia estar mais acomodado que de início. Freud já havia partido. A forma como ele floreava cada frase entrava em perfeita harmonia com o ambiente carregado de história. Estávamos diante de uma iluminação baixa, móveis antigos, ampliações de outra época, um piano de armário e uma biblioteca abastada de livros de arte. Tudo fazendo transparecer que habitávamos outro tempo. Um tempo longe, porém familiar e tateável. A sensação, ao atravessar a pequena porta na Barra Funda, era de ter entrado dentro de um segredo, um universo encantador com pouco acesso.

Além de fotografar pelas ruas, Carlos estendeu sua profissão para o campo de ensino. Em 1971, tornou-se técnico de laboratório e professor na ECA (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). Após 20 anos de estabilidade, deixou a USP e criou uma empresa de cursos independente, palestras e orientações, junto com Regina Martins, sua confidente. Paralelamente, também expôs em diversos museus e galerias. A mais recente foi neste ano no Sesc, em comemoração aos 50 anos de trajetória fotográfica.

Sempre voltando ao estilo clássico como fonte de inspiração, Carlos começou a trabalhar com fotografia colorida em 1988, quando desenvolveu uma alergia aos químicos de laboratório. Mas com sua alma preta e branca, como ele mesmo a define, Moreira transmite uma sensibilidade artística inspiradora. Suas múltiplas camadas de experiência se identificam com suas expressões fotográficas. Suas fotos são uma porta de entrada para sua alma silenciosa, movida a emoções – contentes ou sofridas, mas genuinamente livres.

 

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