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Edição nº 7 – 2018

Caiçara. A pessoa que costuma acordar com os primeiros raios de sol. Quem entende a natureza nos mínimos sinais: a maré, as fases da lua e a posição das estrelas. A necessidade da pesca e da caça para sobreviver faz com que o entendimento da natureza seja fundamental para a população que vive no litoral do país. O simples, o prático e o tradicional são muito importantes  para a comunidade, fazendo parte da rotina de quem, diariamente, depende do trabalho de suas próprias mãos.

O dia começa um pouco antes das cinco da manhã para seu Gilson. Aos 67 anos, ele vive como seus antecessores. “A gente dorme um pouco depois do sol e acorda um pouco antes. A beleza está em ver a maneira como ele vai aparecer e o que traz de novo”. A vida é difícil, e as mãos calejadas do pescador mostram os anos e anos puxando redes, usando linhas e facas para não deixar faltar nada na mesa da família e da comunidade.

A sociedade da Ilha Diana é muito colaborativa. O local fica entre o canal de Bertioga e o rio que dá nome à ilha, a oito quilômetros do Porto de Santos, um pouco mais de 20 minutos do continente. As casas são simples, e o verde é quase tão presente quanto o azul do mar. As crianças são “olhadas” por todos. Os tempos mudaram, e as mulheres trabalham nos barcos agora. Dona Amélia, 59 anos, já ajudou muito no manejo das redes e principalmente a recolher os peixes. “É um trabalho muito bonito. A gente acorda, o sol tá nascendo, e vamos à procura de nosso alimento, que o mar nos dá todos os dias. Ele cuida da gente e a terra complementa”.

Um dos moradores mais velhos da Ilha Diana, seu Raimundo, de 89 anos, é um grande conhecedor do local. As marcas no rosto e nas mãos são registros de anos de experiência. Ele tem três filhos e dez netos. O filho mais novo mora em Santos e se formou em Direito. “Ele é doutor, não gostava da vida por aqui. Já minha neta vem me visitar porque ama o azul do mar”. Os dois filhos mais velhos, João e Carlos, moram na Ilha e trabalham com turismo no local. A prefeitura de Santos organiza passeios para a Ilha Diana, explorando a gastronomia e o ecoturismo. João e Carlos, que fazem a travessia de turistas, afirmam que o encanto é instantâneo. “Na hora que os turistas veem o verde da nossa terra refletido no mar, é amor à primeira vista”, conta o primeiro a bordo do Esperança, uma das barcas autorizadas pela prefeitura e pela CET para o transporte de passageiros.

“A vistoria agora é grande, antes não tinha tanta segurança. Havia uns coletes, mas agora são para todos. É melhor. Esse povo da cidade não sabe nadar”, provoca Carlos. Não somente a implantação dessas regras, mas também o próprio convívio com os “da cidade”, como diz João, trouxeram diferenças para a vida deles. É inegável que algumas coisas estão mudando. Crianças já usam smartphones e têm vontade de viver do outro lado do mar. Mas a comida ainda continua baseada no plantio e na pesca, predominantemente. Os restaurantes e botecos quase sempre servem peixe grelhado, acompanhado de um copinho da “marvada”, como diz seu Raimundo. “Esquenta o coração e a alma, faz bem para o espírito. Na minha família, desde meu tataravô, todos tomam. Antes dele? Não conheci”, afirma, rindo.

O estilo de vida caiçara resiste: famílias inteiras vivendo da pesca, mulheres cuidando do plantio e das crianças. Mas, aos poucos, a realidade vai se transformando. A historiadora Ana Mendes, professora da Universidade Católica de Santos, conta que as comunidades ribeirinhas estão sumindo. A pesca artesanal deu lugar à pesca profissional, quase automática. O consumo de peixe e frutos do mar também mudou muito. Não é todo peixe que é consumido agora, ainda mais com o hábito de comida japonesa crescendo tão rápido na região. “Os peixes são outros, a realidade é outra e aos poucos não haverá mais lugar para esse típico brasileiro, que tanto herdou do índio”.

Seu Gilson entra no barquinho apelidado de São Judas, santo do qual a família é devota, por volta das seis da manhã. O retorno se dá entre cinco e meia e seis da tarde, dependo do movimento do mar e da maré. “Aprendi esses conhecimentos vendo meu pai, que aprendeu com o pai dele e acho que foi assim”, explica. Enquanto ele passa o dia em alto mar, Dona Amélia cuida das crianças e dos bichos de estimação como galinhas e cachorros. A única escola da ilha fica em um lugar muito afastado, por isso é difícil ver crianças frequentando o local. Assim, são as mães que ensinam a elas o pouco que sabem: ler e escrever.

As casas, de madeira, são bem cuidadas. E decoradas com o que a natureza do entorno oferece. Folhas de coqueiro, por exemplo, viram banquinhos para tomar uma cachacinha. Muita pintura, muito corte e costura. O trabalho feminino acompanha o horário dos homens ao mar. O jantar é servido um pouco depois das sete da noite e é reflexo, muitas vezes, do resultado do dia. O restante é posto à venda. “Tem um restaurante, descobri há pouco tempo, que cobra quase 200 reais por um prato. A gente vende pro mercado do peixe, e os donos do restaurante compram de lá. É muito dinheiro pra comer, dá pra imaginar?”, pergunta seu Gilson.

Os caiçaras originais são cada vez mais escassos. Em parte porque a atividade deles se esgota à medida que a tecnologia avança, em outra porque as futuras gerações querem ter outro futuro. Se a vida de seu Gilson, dona Amélia, seu Raimundo, João e Carlos está em transformação, o que dizer então da vida das crianças da ilha? Bernardo, Mariana e Artur (6, 7 e 8 anos, respectivamente) sonham com outras profissões. Mariana quer ser veterinária; Bernardo, surfista; e Artur, salva-vidas ou bombeiro. A realidade de viver da pesca já não faz muito sentido para eles.