A palavra “autarquia”, atualmente, faz parte do colóquio nordestino, sobretudo no Ceará, com bastante naturalidade. Isso se deve a um programa de humor (Nas Garras da Patrulha) de um canal cearense, no qual personagem utilizava tal palavra, com sarcasmo, para bajular pessoas. Entretanto, foi tomada pelo gosto de tal sociedade que a incorporou em seu vocabulário de maneira carinhosa.
“Olá, minha autarquia”, é exatamente assim que Varneci Nascimento, poeta do cordel, chama seus amigos. Baiano da cidade de Banzaê (próxima a Sergipe), ele é bem magro, de estatura baixa, loiro, de olhos verdes. Veste camisa, calça e sandálias. Sua fisionomia transparece uma jovialidade que põe em dúvida tanto sua idade quanto o tamanho de sua produção literária, exclusivamente, dedicada ao cordel. Aos 36 anos, é autor de mais de 200 obras, muitas delas publicadas totalizando mais de 200 mil exemplares vendidos.
Como ocorre naturalmente com todo artista, sua origem foi fundamental para esse dote especializado no cordel. Quando criança, ajudava seu pai na roça. Era comum, nessa época, os trabalhadores rurais se juntarem em mutirões para preparar a terra chamados de “batalhão”. Nele, se formava uma fileira, onde os repentistas ficavam nas pontas e se revezavam nos refrões ao coro dos demais trabalhadores. Essa cantoria era acompanhada pela batida da enxada em um compasso quatro por quatro. Era o primeiro contato de Varneci com a poesia na forma cantada. Ainda menino, era recompensado às noites com as leituras de cordel que seu pai fazia.
Aos dezoito anos, muda-se para Paulo Afonso, divisa com Alagoas, afim de estudar e futuramente se tornar padre. Apesar de estar satisfeito com a nova vida, sentia falta das canções do Batalhão e passou a escrever seus primeiros versos de cordel. No ano seguinte, em 1998, com a morte do bispo de Paulo Afonso, escreve, em sua homenagem, a primeira obra: “Morte e Ressureição de Jesus”, sendo publicada somente três anos depois, quando uma grande oportunidade aparece para Varneci. Neste ano de 2001, uma de suas irmãs cursava serviço social em uma universidade em São Paulo e, ao ter uma aula específica sobre o cordel, comentou com seu professor sobre o trabalho de seu irmão. Muito interessado, o educador pediu que o chamasse para fazer uma palestra em São Paulo.
O encontro com esse professor lhe abre uma ampla rede de contatos na capital paulista. Naquele mesmo ano, é convidado pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, para escrever sobre Paulo Freire, que completaria 80 anos naquela ocasião, produzindo a obra “Paulo Freire: um educador diferente”, seu primeiro trabalho distribuído para professores. Somente após esse trabalho, mas ainda em 2001, que o poeta acaba conseguindo publicar “Morte e Ressurreição de Jesus” com recursos próprios. A tiragem de mil exemplares dessa obra se esgotou rapidamente e a segunda, também de mil, foi vendida na sequência.
Em 2002, decide estudar história na Universidade Estadual da Paraíba quando se muda para a cidade de Guarabira, curiosamente, onde nascera José Camelo de Melo Resende, autor do famoso cordel “Pavão Misterioso”. Embora ainda não lançado por nenhuma editora, o cordel continuava a fazer parte de sua vida universitária e “já pagava as contas” afirma o poeta, com orgulho. “As pessoas acham que ninguém consegue viver de literatura, muito menos de cordel”, complementa.
Ao se formar na faculdade em 2007, migra para São Paulo concluindo que o cordel é sua profissão e que a cidade vai lhe possibilitar a “viver somente dele”. Somente após todos esses anos de carreira e várias publicações com recursos próprios, passou a ter seus cordéis impressos e vendidos pela Luzeiro, se tornando, inclusive, editor dessa empresa empresas que é uma das referências no gênero. “Editora quando a gente está começando, nem olha, isso é praxe”, diz o poeta. De 2008 para cá, com apoio das editoras, o poeta viu sua produção aumentar expressivamente passando a escrever, inclusive, cordéis baseados em obras clássicas da literatura como Memórias póstumas de Brás Cubas e Escrava Isaura. Preocupou-se, também, com episódios históricos como na obra “O massacre de Canudos” narrando o momento do Brasil na época de Antônio Conselheiro.
O artista é entusiasta de seu gênero. Acredita que o cordel de fato voltou à vitrine da produção cultural brasileira por ser um excelente meio para inclusão literária de crianças e adultos. Enfatiza esse ponto ao falar que o cordel é uma literatura “interessante, que diverte, informa através da rima, musical em ritmo quaternário”. Porém, Varneci alerta para necessidade de se manter a métrica e o estilo próprio do gênero nas publicações e enfatiza “O cordel deve ser difícil de fazer, mas tem que ser fácil de entender”.
Em 2009, funda a Caravana do Cordel em conjunto com outros poetas. A Caravana, com o objetivo de “levar essa literatura aonde ainda não chegou”, iniciou seus trabalhos na capital paulista, com saraus que ocorriam todo mês na rua Augusta nos dois primeiros anos. Atualmente expandiu esse trabalho para todo o país, tornando-se tema de tese de mestrado na Universidade Federal de São Carlos pela professora Francisca Batista. Formado por diversos poetas bastante experientes, a Caravana do Cordel tem em Varneci Nascimento seu membro mais jovem.
Ao ser questionado se tem vontade de retornar à Bahia, responde: “Profeta não é bem visto em sua terra” em alusão ao dito popular, uma vez que seu trabalho foi comprado por diversos governos (municipal, estadual e federal), embora nunca tenha sido reconhecido em seu estado. “Se eu estivesse na Bahia, não viveria de cordel” lamenta. Sua produção não só encanta seu público, como orgulha suas gerações anteriores e inspira os futuros cordelistas. Varneci, ainda em sua missão de divulgar o gênero, realiza inúmeras palestras e trabalhos no ensino público e privado promovendo a produção do cordel entre as novas gerações. Amigo fiel e colaborador da perpetuidade do gênero, ele de fato pode ser considerado uma das autarquias do cordel da atualidade.
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