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Edição nº 7 – 2018

Década de 1990. A proliferação dos shopping centers, das capitais ao interior do Brasil, muda a realidade cultural das cidades. As praças e passeios públicos já não são mais ocupados pelos cidadãos como antes. A diversão está no interior dos novos centros comerciais, que chamam a atenção por simbolizarem modernidade, comodidade e segurança. Originalmente espaços de consumo, passam a ser também espaços de convivência, que aliam serviços, alimentação e entretenimento. O público dos antigos e tradicionais cinemas de rua também migra, e, inerente a esse fenômeno de transformação social e cultural, surge o conceito das novas salas de exibição, menores, com cadeiras acolchoadas e confortáveis, sistema de vídeo e som de qualidade impecável, ar condicionado. Tudo condiz com o espaço moderno e seguro que as abriga.

A insegurança das ruas e o acesso a novas formas de entretenimento, sobretudo a TV e a internet, proporcionam a gradativa diminuição do público dos cinemas de rua, bem como a sua migração para as salas nos shoppings, mantidas por grandes redes multinacionais. A decadência e o fim são inevitáveis.

Os grandes e suntuosos prédios dos cines-teatro das primeiras décadas do século 20, que deram lugar às salas de exibição cinematográfica, agora são demolidos, encontram-se abandonados, transformados em comércios de todo tipo ou em igrejas.

Tal realidade é visível em praticamente todo o país. Cinemas de rua são cada dia mais raros. Mas, apesar de ser uma mudança praticamente consolidada, existem algumas exceções e, talvez, uma das mais significativas esteja localizada em São Carlos, município da região central do Estado de São Paulo, a 235 km da capital. Lá, ainda sobrevivem duas salas, no centro da cidade. A história, no entanto, não é a de uma vida ininterrupta, que resistiu às transformações sociais e culturais, mas sim de um empenho do poder público municipal, aliado à paixão que move o proprietário do Cine São Carlos.

Pedro Casella, 63, é um aficionado pelo cinema. E essa relação nasceu ainda nos tempos de criança. “Meu pai era gerente do antigo Cine Progresso, que funcionou neste mesmo prédio na década de 1960. Eu tinha onze anos e vendia balas aqui. Desde então, minha vida sempre foi dedicada ao cinema”, diz.

A história do cinema em São Carlos é uma das mais antigas do país. A primeira exibição na cidade aconteceu no dia 10 de outubro de 1897, no Theatro São Carlos, menos de dois anos após a primeira exibição dos irmãos Lumiére, na França, e apenas um ano após aquela que é considerada a primeira exibição cinematográfica do Brasil, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1896. O responsável foi o mágico ilusionista francês Faure Nicolay, que girava pelo Brasil com a sua trupe da Companhia Francesa de Variedades, apresentando shows de mágica, ilusionismo, hipnotismo, humor e bilhar. Ele adquirira um cinematógrafo Edison e, a partir daquele ano, exibia as imagens ao fim de seus shows.

Mas foi a partir da década de 1920 que o cinema se tornou uma realidade para São Carlos. Desde então, a cidade nunca deixou de ter uma sala de exibição. Os pioneiros, Polytheama e Colombo, ainda na era do cinema mudo, apresentavam além dos filmes, shows com músicos, incluindo orquestras. Nas décadas seguintes surgiram o Cine São Carlos (no antigo Theatro São Carlos), o São José, o Avenida, o São Sebastião, o Paratodos, o Joia. Localizados no centro ou no bairro da Vila Prado, atraíam um grande público, em épocas nas quais a televisão ou não existia, ou não estava ao alcance de todos.

São Carlos chegou a contar simultaneamente com seis cinemas, entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970. Era uma época em que ir ao cinema, local de convivência e socialização, estava cercado de certo glamour. O filme era só mais um detalhe, aliado ao passeio na praça e à ida aos bares do entorno. “A gente tinha que colocar paletó e gravata. Não que fosse obrigatório, mas precisava estar adequadamente trajado. A primeira vez que fui ver um filme no cinema, quando criança, emprestei uma roupa do meu primo. A manga do paletó chegava só até a metade do braço”, conta com nostalgia Celso Camargo, 64, aposentado que frequentava o Cine Joia, na Vila Prado, nos anos 60.

Em 1997, quando o primeiro shopping da cidade foi inaugurado, e com ele três salas de cinema, os anos de ouro da sétima arte em São Carlos já haviam acabado há um bom tempo. O único espaço remanescente era o Cine Studio, que tinha duas salas entre os anos 1970 e 1990, mas que já tinha fechado uma delas, o Cine Studio II, por falta de público. No seu lugar, durante algum tempo, existiu uma igreja evangélica. Esse também seria o destino do vizinho Cine Studio I, que funcionava desde 1976, no mesmo prédio do antigo Cine Progresso, onde Pedro Casella vendia balas. Em 1999, ele deu seu último suspiro.

Porém, em 2007, por iniciativa da Prefeitura Municipal, com a intenção de revitalizar o centro da cidade, o prédio, que também abrigava uma igreja evangélica até há pouco tempo, foi comprado pelo poder público. Uma licitação foi aberta, e a cinematográfica Casella & Casella adquiriu o direito de explorar o espaço. Pedro Casella, então, inaugurou em 2008 a primeira sala do Cine São Carlos.

Ex-proprietário de cinemas nas cidades de Descalvado e São Pedro, no interior do Estado, Pedro realizava o sonho de reabrir o espaço que o fez se apaixonar pela sétima arte. O número 2154 da Rua Major José Inácio voltava a ser o que tinha sido desde a década de vinte: um espaço e um patrimônio cultural. Em 2016, quando o prédio ao lado, que abrigava o antigo Cine Studio II, foi esvaziado, pois a igreja mudara de endereço por conta do alto aluguel, o proprietário ofereceu-o a Pedro. “O preço que ele pediu foi muito alto, e não tínhamos condição de comprá-lo. Foi então que um empresário da cidade [que prefere manter a sua identidade em sigilo] comprou o prédio e nos deu a chave para que abríssemos outra sala”, conta Fátima Aparecida Casella, 62, esposa de Pedro.

O sonho se completava. Hoje, a Casella & Casella administra os Cines São Carlos I e II.  “É uma empresa familiar, que nasceu da paixão de meu marido pelo cinema. Trabalhamos todos juntos”, afirma Fátima. Ela toca o negócio juntamente com o marido e as duas filhas, Mariana, 33, e Mônica, 31.

Todo o moderno equipamento digital das salas é de propriedade da empresa. O prédio onde fica a sala 1 pertence à Prefeitura e, como indica o contrato de concessão para a utilização do espaço, o cinema repassa uma porcentagem da arrecadação com a bilheteria à Fundação Pró-Memória da cidade. O prédio da sala 2 pertence ao empresário, que recebe o aluguel pela utilização do imóvel.

Apesar de não ser mais um espaço de convivência, socialização e paquera, como foram os cinemas de outrora, o Cine São Carlos tenta manter a identidade do passado, despertando a nostalgia de quem o frequenta. As quinhentos e quarenta poltronas de couro vermelho, ali colocadas na década de 1970, e que não foram trocadas quando o local se transformou em igreja, dão um ar retrô à sala 1, despertando a lembrança de quem a frequenta, e ali viu, pela primeira vez, um filme na telona: “Eu tinha uns nove ou dez anos, quando vim a um cinema pela primeira vez. Hoje, prefiro vir aqui do que ir à sala do shopping. E cada vez que entro, me vem a lembrança da infância, de quando vinha assistir com meus pais aos filmes infantis”, diz a professora Talita Lacerda, 31.

A sala 2 tem um ar mais moderno, um pouco mais próximo das chamadas salas multiplex das grandes redes. Em estilo stadium, com poltronas maiores, os duzentos lugares dão uma impressão diferente. “Quando vou à sala mais antiga, parece que voltei no tempo, na época em que via aqui mesmo os filmes dos “Trapalhões”. A sala mais nova é praticamente igual à do shopping”, conta Hélio Teixeira, 39.

Gabriela Volpin, 20, frequenta o cinema há pouco tempo, mas se diz satisfeita pela cidade ter outra opção de lazer. “Quando era criança e adolescente, aqui tinham duas igrejas. Não conheci o antigo cinema. Mas agora, sempre que posso, venho. É mais barato e eu considero mais tranquilo”, afirma a estudante.

Assim, unindo antigos e novos frequentadores, o Cine São Carlos tenta atrair cada vez mais público. O preço é mais atrativo. “O ingresso custa a metade do que eu pagaria no shopping”, diz Gabriela. Além disso, por se encontrar no centro e, portanto, servido por várias linhas de ônibus vindos de vários bairros da cidade, um dos únicos cinemas de rua do interior do Estado de São Paulo lança mão de outras atrações para o público, como o estacionamento gratuito e a exibição dos chamados filmes “fora de circuito”. “Quando inauguramos, tentamos reviver a ‘Sessão Maldita’, mas o público foi pequeno, e tivemos que parar, para não dar prejuízo”, lamenta Pedro.

A “Sessão Maldita”, exibida entre as décadas de 1970 e 1990, pelo setor cultural da Universidade Federal de São Carlos, no antigo Cine Studio I, atraía um grande público de estudantes, a maior parte proveniente das duas universidades públicas da cidade. Acontecia às quartas-feiras, em um horário alternativo, com a projeção de filmes que, geralmente, só chegam a alguns cinemas da capital. “Gostava de ir nas sessões malditas, que acontecia sempre após as 22h. Enfrentávamos longas filas e, mesmo assim, não era certeza de que conseguiríamos entrar”, relembra Alex Turci, 44, destacando que as sessões eram muito disputadas, principalmente pelos universitários. “A programação original e diferenciada atraía o público, interessado não somente no filme, como também nos debates que aconteciam depois das exibições”, completa o professor de História, que agora leva a filha Valentina, 8, para as sessões infantis vespertinas.

O Cine São Carlos, contudo, ainda mantém a tradição de ter sessões dedicadas a filmes alternativos que, geralmente, não chegam ao interior. Com o argumento de que não há público para eles, filmes europeus ou asiáticos, por exemplo, são raríssimos nas salas costumeiramente invadidas pelos blockbusters.  Mas o cinema de rua de São Carlos reserva espaço para eles. O filme italiano “Histórias de amor que não pertencem a este mundo”, da diretora Francesca Comencini, integrante da seleção do Festival do Rio e do Festival de Locarno, era a opção na semana da reportagem, em sessões diárias, no horário das 19h30. “Sempre reservamos espaço para um filme atual e ’fora do circuito’ dito comercial. Temos um público leal a esse tipo de cinema, e também queremos contemplá-lo”, diz o proprietário.

Pedro espera que o seu cinema siga a todo vapor, e se mantenha vivo na memória da cidade. E que o público continue prestigiando esse raro espaço de cultura e entretenimento. “Queremos que esse espaço cultural se mantenha por muito tempo, e faça parte da vida cultural da cidade”, completa.