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As luzes do teatro se apagam e entram em cena os turbantes roxos e os vestidos rodados dos integrantes da Alvin Ailey American Dance Theater. Os movimentos grandiosos da coreografia Four Corners, de Ronald K. Brown, agora preenchem os vazios do palco. Sete horas de ensaios diários e longos períodos de dedicação e estudo resultaram nesse constante movimento. Os dançarinos se aventuram por ritmos africanos e incendeiam o teatro, como se a dança fosse a manifestação da alma através do corpo.

Porém, a realidade por trás das coxias é outra. O suor que brilha na testa vem de anos de estudo. Glenn Allen Sims ingressou na dança aos 9 anos e integra a Alvin Ailey há 17. Formou-se em dança pela Juilliard School. Estuda pilates para poder entender as necessidades do corpo – a consciência corporal passa também pela compreensão do movimento.

Enquanto o músico possui um instrumento, o dançarino tem como fonte de trabalho e inspiração o seu próprio corpo. Todo cuidado é pouco quando os ensaios se estendem por várias horas em um mesmo dia. Para Glenn, “comer bem, descansar e cuidar de seu corpo” é essencial para manter a consistência e a disciplina na carreira de bailarino.

Instrumento humano
Há ainda a prevenção médica para evitar ferimentos. Betina Zacharias, fundadora da escola de dança Fama, formou-se em educação física pela USP e já foi bailarina profissional. Seu olhar atento às aulas a ajuda a corrigir eventuais problemas posturais e ortopédicos de alunos, principalmente crianças, para que no futuro elas não desenvolvam nenhum tipo de lesão.

A Alvin Ailey também preza pela saúde física de seus bailarinos. Uma fisioterapeuta os acompanha em todas as turnês. Hope Boikin, bailarina da companhia, vê esse cuidado como algo médico e preventivo. Para ela, a tecnologia é benéfica para que o dançarino possa ter consciência do que ele está sujeito e compreender quais cuidados são necessários em relação à sua saúde.

Os corpos malhados transformam os artistas em atletas. Além disso, o estudo de educação física pode ser uma alternativa complementar à formação profissional. André Pires, b-boy especializado em danças urbanas, procurou a faculdade por pressão dos pais e por ser ex-jogador de futebol. Ao entrar no mundo do desporto, descobriu as inúmeras possibilidades da dança.

Anatomia, fisiologia e cinesiologia são três pilares importantes para a compreensão do corpo, na visão de André e Betina. Eles usam princípios da educação física com seus alunos. Esse tipo de conhecimento enriquece, mas, para um dançarino, cursar educação física não é absolutamente necessário. Apenas ajuda a ampliar a visão sobre o corpo e sobre a dança.

Betina Zacharias encontrou na faculdade as ferramentas para enriquecer sua consciência corporal. O estudo trouxe para ela um olhar clínico sobre o corpo, que vai além do artístico. A parte esportiva não pode se dissociar da dança, que faz do corpo sua fonte de trabalho.

Karine de Matos, bailarina profissional da Cia. Jovem Bolshoi Brasil, percebe essa linha muitas vezes tênue entre arte e esporte: “O bailarino antes de ter um físico, precisa se expressar no palco. O treinamento físico faz parte. Por isso, muitas vezes somos chamados de atletas cênicos”. Faculdades de dança ainda são pouco difundidas, mas a importação de métodos estrangeiros solidifica o ensino de dança no Brasil. A Escola de Teatro Bolshoi é a única filial da escola russa no mundo. Extremamente conceituada, seus alunos de balé são selecionados e passam por uma formação de oito anos. Além de uma instrução profissional, o Bolshoi propõe uma educação humana. “Nossa missão é formar artistas cidadãos, promovendo e difundindo a arte educação. Queremos que as crianças sejam formadoras de opinião”, afirma a professora Germana Saraiva.

Arte na prática

O método “Vaganova” (nome cunhado no século passado pela bailarina Agrippina Vaganova) é usado pela escola russa na formação de seus bailarinos. Esse método valoriza a plasticidade e a expressividade dos movimentos, usando todas as partes do corpo. A grade curricular da escola tem aulas práticas, como ginástica acrobática, e também matérias teóricas, como história da dança e folclore brasileiro. O currículo é repartido diariamente em seis horas, das quais duas são dedicadas aos ensaios para os espetáculos.

O método da Royal Academy of Dance, também conhecido como “inglês”, é um meio para transmitir a técnica clássica. Betina Zacharias optou por ele na Fama, sua escola. Dividido por níveis que acompanham a idade, o aluno vai, gradativamente, aprimorando sua base. Não há uma seleção de alunos. Todos têm potencial para dançar, desde que haja vontade e paixão.

Nos primeiros anos, a criança começa a entender seu corpo e conquista uma grande capacidade de movimento. Com 12 anos o aluno pode optar por uma especialização: vocacional ou grade. O vocacional treina o bailarino para ser solista, grande profissional; o grade é indicado para quem procura técnicas de dança moderna e free movement.

São oito anos de formação até o diploma da Royal Academy. Os professores certificados precisam passar por um treinamento de dois anos e fazer anualmente um curso de reciclagem para se manter atualizados. Betina também acrescentou toques teóricos para o curso de formação em dança clássica. No sétimo ano, seus alunos redigem um trabalho sobre repertórios clássicos do balé e fazem um mapeamento da dança nacional.

No oitavo ano, há uma pesquisa sobre anatomia, “para saberem que músculo é usado quando se faz um arabesque”, e um trabalho sobre história geral da dança. A formação precisa ir além da prática. É necessário entender o cenário e a história da dança de um ponto de vista nacional e internacional.

“A dança se baseia principalmente no comprometimento: 70% de dedicação e 30% de talento”

Amador ou profissional?
O DRT (Delegacia Regional do Trabalho) é um carimbo na carteira de trabalho que prova a profissionalização como bailarino ou dançarino. Uma banca analisa um solo ou pas de deux de até três minutos e avalia o currículo. Há controvérsias em relação à veracidade desse documento. “Não é preciso ter um nível técnico excelente para tirar o DRT. O profissional é diferente do amador, com a proposta em que ele se coloca”, diz Betina.

Um dançarino que paga para dançar em um grupo é considerado um amador. A pessoa que ganha para isso é considerada profissional. O b-boy e dançarino profissional André Pires percebe que os especialistas em danças urbanas não compõem o júri para o DRT. Um especialista em dança clássica terá dificuldades para avaliar, por exemplo, uma coreografia de hip hop. “A procura é muito grande. Muitos profissionais de danças urbanas têm de tirar o certificado. E lá não tem gente qualificada à altura para fazer essa avaliação”, diz André.

Nos Estados-Unidos, as faculdades de dança formam os profissionais (é o caso de Glenn Allen Sims). O ensino e o incentivo à dança são muito mais difundidos que no Brasil. Quase toda grande cidade tem sua companhia de dança, ainda que pequena.

Hope Boikin cursou psicologia, mas desistiu dessa área para tornar-se bailarina. Embora nunca tenha se formado, estudou seis anos na Alvin Ailey School até ingressar na companhia e receber o status de profissional. A devoção à dança pode ser a verdadeira diferença entre profissional e amador, segundo Betina. “A dança se baseia principalmente no comprometimento: 70% de dedicação e 30% de talento fazem o 100% na dança.”

A rotina em uma companhia de dança pode ser muito puxada. Na Alvin Ailey American Dance Theater os ensaios chegam a sete horas por dia e há turnês internacionais. Robert Battle, diretor da companhia, acredita que os ensaios sejam proveitosos. Devido à formação que seus dançarinos recebem, “parece que eles não fazem esforços, que é natural”. Um novato ensaia durante cerca de um mês e meio para poder se apresentar.

No Brasil, os bailarinos recebem uma boa formação, mas tendem a procurar companhias no exterior. Viver de dança é algo muito difícil atualmente, segundo Betina Zacharias. “Para sobreviver, você tem que ralar muito e dar aulas. Não basta fazer parte de uma companhia.” Ainda assim, professores de dança não costumam ser registrados, as companhias não conseguem grande estabilidade.

Betina conta o caso de sua aluna, Mima de Freitas, que foi dançar no Ballet Nacional de Chicago, na qual tinha aposentadoria e “era respeitada”. Obteve assistência médica, mesmo sendo estrangeira, ao sofrer uma queimadura. Betina compara isso à sua situação no Brasil, no qual passou por quatro grandes companhias e foi registrada apenas no Balé da Cidade, onde trabalhou por um ano.

Arte cultivada
A Escola de Teatro Bolshoi conseguiu criar a Companhia Jovem Bolshoi Brasil para dar ao bailarino uma primeira oportunidade de emprego. Segundo a professora Germana Saraiva, 64% dos bailarinos formados pela escola russa estão presentes em grandes companhias mundiais, como o American Ballet Theater e o Teatro Bolshoi de Moscou. “Já temos boas companhias nacionais, mas o cenário ainda está em desenvolvimento. Precisamos de companhias que valorizem o bailarino, para que os talentos queiram trabalhar aqui, no Brasil”, analisa Germana.

Como qualquer outra profissão, a dança tem suas dificuldades. Para Karine de Matos, da Cia. Jovem Bolshoi, é preciso paciência: “O resultado do seu trabalho vem ao longo do tempo”. E esse tempo está mais elástico. As possibilidades de prevenção de lesões têm prolongado a carreira dos bailarinos. Além disso, a própria estrutura física é um fator decisivo. Para Betina, um pé alinhado e um joelho favorável influenciam na duração da carreira.

O programa da Royal Academy aceita alunos a partir de dois anos e meio. Segundo esse método russo, o bailarino que pretende se tornar profissional deve iniciar aulas entre 9 e 10 anos, porque a dança é uma arte desenvolvida cedo. Assim como um jogador de futebol, o dançarino inicia seus treinamentos antes mesmo de o corpo se consolidar.

A dança é uma arte cultivada desde cedo, e que vai aos palcos para emocionar as plateias. Enquanto Billy Elliot sentia eletricidade quando dançava, Glenn e Hope, da Alvin Ailey, demonstram paz interior quando se apresentam. Na coxia, esperando tomar conta do palco, o nervosismo está sempre presente. Glenn acredita que dançar é um ato sagrado e merece ser dividido com o público: “Ficar nervoso antes do espetáculo é uma maneira de mostrar humildade”.