Muitas são as palavras usadas para caracterizar o jornalismo atual: coragem, polêmica, saturação, digitalização, onipresença, etc. Embora muitas sejam empregadas sob um véu ideológico e preconceituoso, ou por simples amor à profissão, há uma característica difícil de negar: adaptabilidade. Em revista, rádio, TV, internet, cinema ou livro, o jornalismo se faz presente pela sua capacidade de se adaptar às circunstâncias e de ajustar suas linguagens.

A informação, antes restrita a nichos letrados, foi disseminada para todas as idades e classes, e a globalização da notícia virou realidade. Mas haveria uma mídia incompatível com a reportagem jornalística? Ainda não se sabe. Entende-se, porém, que hoje em tempos de “novas mídias” e de ampla necessidade de “reinvenção” de formatos, os quadrinhos se tornaram um meio importante para a narração de histórias reais.

Sem a pretensão de inovar, mas, sim, possibilitar outras formas de imersão do público no mundo dos acontecimentos contemporâneos, já é possível falar em “jornalismo em quadrinhos”. E autores de renome no gênero, como o maltês Joe Sacco, têm encontrado adeptos no Brasil – pessoas que praticam ou estudam o assunto. A ideia de que “todo jornalista é um pouco herói”, tão proferida pelo senso comum, sob exaltações e ironias, nunca foi tão apropriada.

Formas e regras
“O jornalismo em quadrinhos pode ser uma forma de chegar a outro nível de profundidade um determinado assunto. Os quadrinhos podem dar a um tema um caminho de compreensão objetiva e emocional que outras formas de reportagem não conseguem”, acredita Augusto Paim, jornalista graduado pela Universidade de Santa Maria (UFSM).

Augusto é também curador e organizador do Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, que ocorre em Porto Alegre. Segundo ele, as obras produzidas atualmente tendem a dialogar melhor com pautas que possuam um apelo visual forte, além de servir bem à abordagem de temas memorialísticos – um viés, aliás, muito presente nas principais obras do gênero.

O trabalho realizado segue os mesmos preceitos jornalísticos das reportagens narrativas e dos documentários audiovisuais. “Uma reportagem em quadrinhos precisa, fundamentalmente, das mesmas coisas que uma matéria jornalística: um bom tema, uma abordagem pertinente e uma boa apuração”, comenta o professor Aristides Corrêa Dutra, pesquisador e precursor no debate sobre a relação jornalismo-quadrinhos.

Segundo ele, o diferencial é a busca pelo maior detalhamento das cenas que se quer narrar, justamente para que o quadrinho seja fiel à realidade retratada. Histórias em quadrinhos não precisam, necessariamente, ser publicadas em revistas. As demais mídias físicas e até mesmo digitais são opções viáveis, diz ele.

Porém, o modo como as obras com viés jornalístico são publicadas é influenciada pela dimensão do trabalho, devido às questões de pesquisa e apuração dos fatos, além do tempo dedicado aos desenhos. “Joe Sacco publicou a obra Palestina como uma minissérie, em revista. As vendas em comic shops foram pequenas. Mas, quando ele a republicou compilada em livro, o sucesso de público e crítica foi enorme”, lembra Aristides.

Pergunta-clichê
“Mas os quadrinhos não são coisa de criança?” Esse tipo de questionamento ainda é muito comum e inevitavelmente limita a importância do quadrinho. Para Augusto Paim, essa questão, no âmbito do jornalismo, é uma via de mão dupla: “O fato de remeter à infância até ajuda a divulgar o gênero, mas ao mesmo tempo é uma forma de negar a qualidade. Outro preconceito é a ideia de que quadrinho é uma coisa fácil de fazer”.

Apesar das semelhanças com o jornalismo em quadrinhos, o surgimento de graphic novels como O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e Watchmen, de Alan Moore, claramente voltados ao público adulto e com forte carga política, econômica e social, conseguiram reduzir o estereótipo. Na visão de Augusto, a força das graphic novels no país não determina o sucesso do formato jornalístico: “Havia espaço nas editoras, mas elas agora publicam apenas livros que podem ser vendidos para o MEC como adaptações literárias. O mercado está restrito a publicações bastante comerciais”.

“Os quadrinhos podem dar uma compreensão objetiva e emocional que outras formas de reportagem não conseguem”

Não é necessário voltar muito no tempo para confirmar a ideia de Augusto: as editoras Conrad, responsável por trazer parte dos trabalhos de Joe Sacco para o Brasil, foi vendida em 2009, e mudou o seu foco de lançamentos; e a editora Barba Negra, que publicou a HQ Morro da Favela, um dos destaques nacionais do gênero, encerrou suas atividades em 2012, após o cancelamento do contrato coma editora portuguesa Leya.

Atualmente, a Companhia das Letras e a revista Fórum têm experimentado o gênero. “Felizmente, pelo menos já se viu que é mais uma ferramenta que se pode usar. Não é para substituir o jornalismo tradicional, mas, sim, uma possibilidade a mais”, diz Érico Assis, jornalista, publicitário e tradutor de obras literárias.

Uma possibilidade
Érico lança uma luz sobre esse complexo gênero que ainda gera dúvida tanto para os jornalistas quanto para os quadrinistas. Sem dúvida, as obras de Sacco, que narram suas experiências no Oriente Médio e na Europa Oriental, influenciaram o meio cultural brasileiro na arte de fazer jornalismo em quadrinhos, e o reconhecimento não tardou a vir.

Morro da Favela, de André Diniz, que narra a vida do fotógrafo Maurício Hora e sua história no Morro da Providência (RJ), ganhou o Prêmio HQ Mix – principal premiação de quadrinhos no país – de Melhor Edição Especial Nacional em 2012.

Para Aristides, produção e visibilidade são os elementos fundamentais para o estímulo desse gênero no Brasil: “A questão é que a visibilidade depende da boa produção. As reportagens em quadrinhos têm se tornado progressivamente mais frequentes no Brasil e no mundo. Mas, em território nacional, ainda predominam as obras breves, de poucas páginas”.

Tímido, mas com um espaço bem definido, o jornalismo em quadrinhos está tentando consolidar seu objetivo de unir dois universos que, nas décadas de 1970 e 1980, pareciam não ter uma correlação. Obras como Maus, do sueco Art Spielgman, primeiro quadrinho a conquistar um Pulitzer, e American Splendor, do americano Harvey Pekar, não foram encaradas como jornalismo, na época. “Hoje, não vejo oposição a essa união. Ao contrário. Muitas pessoas estão fazendo experimentos”, diz Érico.

Colorido ou preto e branco, com traçado leve ou rebuscado, o jornalismo ganhou mais um aliado em sua missão de informar, interpretar e narrar, desde que os próprios autores continuem produzindo trabalhos marcantes, unindo tanto os fãs das HQ’s tradicionais quanto o público que nunca leu uma história do Hulk. “A reportagem em quadrinhos precisa dizer a que veio. E isso vai acontecer com o surgimento de obras realmente marcantes”, diz Aristides.

 

 

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