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Edição nº zero – 2013

As discussões muitas vezes acaloradas sobre o reconhecimento da pixação como expressão artística traz à tona um questionamento conceitual importante: uma vez considerado arte contemporânea, o movimento perderia sua essência? Para compreendermos os desdobramentos da pixação, alguns aspectos presentes no graffiti são essenciais e importantes de serem resgatados. O graffiti nasceu originalmente nos EUA, na década de 1970, como um dos elementos da cultura hip-hop (Break, MC, DJ e Graffiti). Daí até os dias atuais, ele ganhou em força, criatividade e técnica, sendo reconhecido hoje no Brasil como graffiti artístico. Sua caracterização como arte contemporânea foi consolidada definitivamente por volta do ano 2000.

A distinção entre graffiti e pixação é clara; ao primeiro é atribuída a condição de arte, e o segundo é classificado como um tipo de prática de vandalismo e depredação das cidades, vinculado à ilegalidade e marginalidade. Essa distinção das expressões deu-se em boa parte pela institucionalização do graffiti, com os primeiros resquícios já na década de 70.

Esse desenvolvimento técnico e formal do graffiti ocasionou a perda da potência subversiva que o marca como manifestação genuína de rua e caminha para uma arte de intervenção domesticada enquadrada cada vez mais nos moldes do sistema de arte tradicional. O grafiteiro é visto hoje como artista plástico, possuindo as características de todo e qualquer artista contemporâneo, incluindo a prática e o status. Muito além da diferenciação conceitual entre as expressões – ainda que elas compartilhem da mesma matéria prima – trata-se de sua força e essência intervencionista.

Estudos sobre a origem da pixação afirmam que o graffiti nova-iorquino original equivale à pixação brasileira; os dois mantêm os mesmos princípios: a força, a explosão e o vazio. Uma das principais características do pixo é justamente o esvaziamento sígnico, a potência esvaziada. Não existem frases poéticas, nem significados. A pixação possui dimensão incomunicativa, fechada, que não conversa com a sociedade. Pelo contrário, de certa forma, a agride. A rejeição do público geral reside na falta de compreensão e intelecção das inscrições; apenas os membros da própria comunidade de pixadores decifram o conteúdo.

A significância e a força intervencionista do pixo residem, portanto, no próprio ato. Ela é evidenciada pela impossibilidade de inserção em qualquer estatuto pré-estabelecido, pois isso pressuporia a diluição e a perda de sua potência signo-estética. Enquanto o graffiti foi sendo introduzido como uma nova expressão de arte contemporânea, a pichação utilizou o princípio de não autorização para fortalecer sua essência.

Mas o quão sensível é essa forma de expressão extremista e antissistema como a pixação? Como lidar com a linha tênue dos princípios estabelecidos para não cair em contradição? Na 26ª Bienal de Arte de São Paulo, em 2004, houve um caso de pixo na obra do artista cubano naturalizado americano, Jorge Pardo. Seu comentário, diante da intervenção, foi “Se alguém faz alguma coisa no seu trabalho, isso é positivo, para mim, porque escolheram a minha peça entre as expostas” (…). “Quem fez isso deve discordar de alguma coisa na obra. Pode ser outro artista fazendo sua própria obra dentro da minha. Pode ser só uma brincadeira” e finalizou dizendo que “pichar a obra de alguém também não é tão incomum. Já é tradicional”.

É interessante notar, a partir do depoimento de Pardo, a recorrência de padrões em movimentos de qualquer natureza, e o inevitável enquadramento em algum tipo de sistema, mesmo que imposto e organizado pelos próprios elementos do grupo. Na pixação, levando em conta o “sistema” em que estão inseridos, constatamos que também passa longe de ser perfeito; existe rivalidade pesada entre gangues, hierarquia e disputas pelo “poder”.

Em 2012, a Bienal de Arte de Berlim, com o tema “Forget Fear”, considerado ousado, priorizou fatos e inquietações políticas da atualidade. Os pixadores brasileiros, Cripta (Djan Ivson), Biscoito, William e R.C., foram convidados na ocasião para realizar um workshop sobre pixação em um espaço delimitado, na igreja Santa Elizabeth. Eles compareceram. Mas não seguiram as regras impostas pela curadoria, ao pixar o próprio monumento. O resultado foi tumulto e desentendimento entre os pixadores e a curadoria do evento.

O grande dilema diante do fato é que, ao aceitarem o convite para participar de uma bienal de arte, automaticamente aceitaram as regras e o sistema imposto. Mesmo sem adotar o comportamento esperado, caíram em contradição. Por outro lado, pela pichação ser conhecidamente transgressora (ou pelo jeito, não tão conhecida assim), os organizadores deveriam pressupor que eles não seguiriam padrões pré-estabelecidos.

Embora existam movimentos e grupos que consideram, sim, a pixação como forma de arte, como é o caso dos curadores da Bienal de Berlim, há uma questão substancial que permeia a realidade dos pichadores. Quem disse que eles querem sua expressão reconhecida como arte? Se arte pressupõe, como ocorreu com o graffiti, adaptar-se a um molde específico, seguir determinadas regras e por consequência ver sua potência intervencionista diluída e branda, é muito improvável que tenham esse desejo.

A representação da pixação como forma de expressão destrutiva, contra o sistema, extremista e marginalizada é o que a mantêm viva. De certo modo, a rejeição e a ignorância do público é o que garante sua força intervencionista e a tão importante e sensível essência.

 

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