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Edição nº 4 – Janeiro de 2016

 

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A ilha dos dissidentes pode não ser uma reconhecida distopia de premiados best-sellers como Jogos vorazes (Suzanne Collins), Divergente (Veronica Roth) e Maze runner (James Dashner), mas o livro que dá início à trilogia Anômalos tem peso semelhante a essas outras obras. Afinal, Bárbara Morais, autora da saga, é a primeira escritora brasileira a se aventurar nesta área da ficção em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação, também chamada de anti-utopia. A primeira de muitas, cabe dizer.

A exemplo de Aldous Huxley (Admirável mundo novo), George Orwell (1984) e Ray Bradbury (Fahrenheit 451), Bárbara construiu um mundo de fantasia aliado à ficção e adicionou à equação um toque de caos. Na trilogia, a inspiração nos mutantes de X-Men se une ao mundo apocalíptico de Jogos vorazes, e da mistura entre Wolverine e Katniss Everdeen resulta Sybil, personagem que guiará o leitor, em primeira pessoa, ao longo da saga. Com seus místicos – e parcialmente inexplicáveis – poderes e sua personalidade acurada e plausível, Sybil passa por jornada do herói semelhante à descrita por Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces (1949).

É o arco da história, como descreve Bárbara. “Basicamente, dar à protagonista o que ela quer, no primeiro ato; mostrar que o que ela quer não é tão bom assim, no segundo; e fazer com que ela tente melhorar o que conquistou, no terceiro e último”, diz. Neste meio tempo, no entanto, o papel da escritora não é apenas o de envolver o leitor com a trama e dar à personagem principal os obstáculos de que ela precisa. É, também, conciliar o real com o surreal, característica típica dessas obras.

“A maior qualidade de escrever são os ‘e se’. As situações hipotéticas. Quer dizer, toda ficção é isso. Mas a distopia, especificamente, é política. Ela permite enxergar implicações. Em Anômalos, o ‘e se’ envolve pessoas com poderes sendo discriminadas. Agora, pare para pensar: já aconteceu [discriminação associada a minorias]. Ainda acontece. Não é tão longe da nossa realidade. Mesmo assim, o autor causa estranhamento em quem está lendo. E isso é uma das coisas de que mais gosto”, elenca.

Por outro lado, essa habilidade de descrever, por meio da ficção, realidades perturbadoras tem seu lado negativo. É a função de “oráculo do mal”, como ela gosta de chamar. “Nós, autores, colocamos problemas onde eles são necessários na história e, por vezes, eles acontecem na vida real. No segundo livro, por exemplo, há uma eleição. É diferente, mas inspirado no que acontece na realidade. Ao mesmo tempo, eu não esperava que a situação se complicasse tanto. No terceiro livro, indo além, há a questão de refugiados parecida com a real. Claro que é o objetivo, mas eu não queria que os leitores precisassem refletir enquanto os desastres acontecem. Seria bom refletir sem precisar passar por isso. Sem as complicações na vida real”, diz, referindo-se a um possível impeachment da presidente Dilma Roussef e à crise de refugiados, respectivamente.

Bárbara inclui, ao longo de sua trama, a exemplo da divisão dos estados norte-americanos em Panem, em Jogos vorazes, e da devastada Chicago, em Divergente, muitas outras referências geopolíticas. “Não queria criar um mundo isolado. Outro universo em que só existisse um país, uma língua, um tipo de cultura. No mundo de Anômalos, tentei construir algo que fosse possível de acontecer. Improvável. Mas plausível”. Diferentemente dos best-sellers, há, em Anômalos, uma pegada asiática forte. Mas por que a Ásia? Bem, é uma questão de influência. “As histórias japonesas são narrativas bem diferentes das nossas”, resume.

 

Temas polêmicos e “politicamente corretos”
Intencionalmente, a autora insere temáticas como essas que servem de inspiração para novos modelos deste tipo de literatura. “Eu sentia falta de livros que tratassem de segregação de forma interessante. Anômalos é isso. Gosto dessa ideia de usar superpoderes ou mutações como metáfora racial ou como forma de expressar a luta de gênero. É muito forte pensar que as pessoas que têm poderes são dominadas, sendo que, por nosso juízo de valor, elas são superiores às que não têm. Esse jogo de realidade causa impacto e nos faz pensar como tratamos o que é diferente”, afirma.

Impacto é uma palavra da qual Bárbara entende – e bem. O rebuliço que ela causou no mercado editorial juvenil brasileiro é apenas uma pequena amostra do potencial do gênero no País. “Sinto que ser a primeira autora brasileira a lançar uma distopia foi um marco para outras. Diversas escritoras lançaram depois de mim. Não estou falando que elas escreveram por minha causa, mas que já tinham escrito e, porque uma pessoa conseguiu ser publicada, as editoras passaram a publicá-las também. Há espaço no mercado para isso”, garante.

Bárbara entende que autoras como ela não são regra, é claro. Ainda há resistência, especialmente em relação a escritoras mulheres, no modelo convencional que envolve grandes editoras. “Temos, ainda, poucas autoras que publicam fantasia e ficção científica no Brasil. Quer dizer, de forma tradicional. Independente, várias – e maravilhosas – estão se aventurando por aí. Mas as editoras tradicionais não buscam mulheres nesse gênero. Acho um erro. É importante abrir portas, inclusive para as leitoras. É a oportunidade de se desassociar dessa ideia de que literatura nacional é ruim”.

Questionar a qualidade do que vem sendo produzido no País parece unanimidade entre os leitores mais jovens, de acordo com a autora. “Indico vários outros quando me dizem isso – e olha que dizem com frequência”. Por isso, para ela, é importante publicar literatura brasileira de qualidade. “Muitas vezes, quem faz esse juízo de valor ainda não leu livros de autores brasileiros contemporâneos. Leu os clássicos, que são maravilhosos, mas leu forçado, na escola, sem maturidade e carga de leitura suficientes para apreciar aquilo”, opina.

Não por menos, Bárbara acompanha com afinco a produção nacional e, de quebra, tem boas referências. “Indico sempre o trabalho do Felipe Castilho (da quadrilogia Ouro, Fogo e Megabytes). Ele lida com folclore de forma maravilhosa. É magistral. Saindo de fantasia e ficção, gosto da Dayse Dantas (do drama Nada dramática). Me identifico muito com os livros dela, com as experiências que ela conta. Dentro de distopia, gosto da Roberta Spindler (de A torre acima do véu), que escreveu um livro – e não uma série em si – o que eu acho um ponto positivo”, salienta, rindo, a autora da trilogia.

Com o terceiro volume da saga, A retomada da união, a primeira experiência profissional da escritora chegou ao fim. Ao lado de A ilha dos dissidentes e A ameaça invisível, respectivamente, Bárbara Morais deu um desfecho ao primeiro capítulo de sua carreira. “É uma sensação de alívio. Contei a história que tinha para contar com esses personagens. Dá tristeza pensar que nunca mais escreverei com eles. Mas acabou. E acabou”, enfatiza.

Terminou, sim, sua primeira trilogia. Mas a estudante de economia de 25 anos pretende seguir carreira literária e promete desbravar novas narrativas e gêneros. Serão novos projetos, completamente desprendidos de Anômalos. Isso porque Bárbara quer colocar em prática a mesma filosofia que impõe, rigorosamente, aos seus personagens: a temida jornada de crescimento. “No final, essa é a melhor parte da ficção: sair da história diferente de como entrou”. E essa é a melhor parte da literatura, também: sair do livro diferente de como entrou.