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Edição nº 1 – 2014

Márcio Chagas da Silva apitava o jogo Esportivo X Veranópolis sob insultos como “macaco”, “teu lugar é na selva” e “volta para o circo” em Bento Gonçalves (RS) e ao término da partida realizada em abril de 2014, encontrou a porta de seu carro amassada e sobre ele, bananas. O episódio nos remete a um tema recorrente na história brasileira – a democracia racial em campo.

Em entrevista à Revista Arruaça, o mestre em História das Ciências, participante do Grupo de Estudos sobre as Relações Raciais no Brasil, o GERB, da Universidade Federal do Pará, Raphael Uchôa, afirma que “o problema do racismo no Brasil é complexo e a sua própria existência é negada por muitos indivíduos”.

O futebol brasileiro teve sua origem nos clubes formados por engenheiros e técnicos ingleses no início do século XX. Relegado, inicialmente, a poucos clubes de bairros de elite, hoje no país da copa, é um esporte para muitos. Podemos dizer que o futebol brasileiro rompeu com a estrutura aristocrática dominante e se “democratizou”?

Eu não diria que o futebol brasileiro “rompeu” tal estrutura. Entendo que a estrutura aristocrática mencionada é multifacetada e historicamente complexa para ser rompida por qualquer fenômeno social pensado de forma isolada. Além disso, há diversos clubes formados em diferentes contextos regionais na primeira metade do século XX que uma análise mais atenta pode inclusive repensar a ideia de que o futebol brasileiro realmente teve origem no âmbito aristocrático. Isso eu deixo para um especialista no tema do futebol, é só um ceticismo histórico. Mas feitas as ressalvas penso ser possível afirmar que o futebol brasileiro contribuiu para a flexibilização da estrutura social nas primeiras décadas do século XX e que a fundação de times como Corinthians e Flamengo permitiram a necessária convivência entre ricos e pobres em um mesmo espaço.

 

Mário Filho em seu livro, O negro no futebol brasileiro, trata como uma revolução a ruptura entre as forças dominantes da aristocracia branca e a ascensão negra no futebol brasileiro . “Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor”, afirma o autor. Tendo em vista os recentes episódios de racismo no futebol brasileiro, como a revolução a que se referiu Mário Filho pode ser interpretada?

Entendo que os recentes episódios de racismo contra jogadores e árbitro negros contrastem com o contexto histórico pintado por Mario Filho por que sua intepretação me parece, no mínimo, limitada e problemática do ponto de vista histórico, isto é, supor uma “ruptura” ou uma “revolução” no sentido de uma mudança radical na relação entre as diferentes estruturas sociais no Brasil, mesmo que restrita ao futebol, é não levar em conta a continuidade das “representações” acerca dos brasileiros de cor negra e a maneira que tais “representações” adentram aos estádios de futebol. Penso ser um equívoco supor que os muros do estádio possam magicamente funcionar como uma espécie de lente de correção histórica e social onde ao passar pela catraca os indivíduos se dispam de uma série de ideias sobre o lugar social do negro. Nesse sentido, o xingamento de jogadores e juízes negros de “macacos” ou coisas do tipo é, sem dúvidas, uma aberração ética mas não uma incoerência do pensamento daquele que o faz, uma vez que é esse o tipo de imagem que ele foi (des)educado a nutrir.

 

“Não tivemos grandes guerras no Brasil e na ausência dessa matéria prima para a construção das fronteiras de identidade, o futebol forneceu o simulacro de conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções e construir sentidos de pertencimento nacional”, afirma Luís Fernandes, cientista político e historiador da PUC-RJ e Universidade Federal Fluminense. De que maneira o futebol contribui para a construção e consolidação da nossa identidade nacional?

 

A construção da identidade de um povo é um dos temas mais fascinantes e complexos dos estudos históricos. Sem dúvidas o esporte tem um incrível poder de gerar o senso de pertencimento à um determinado grupo ou lugar geográfico. Nelson Mandela entendeu isso e imprimiu contornos positivos ao Rugby em uma África do Sul recém saída do Apartheid. Os militares no Brasil também entenderam a ideia e exploraram o senso de pertencimento dos brasileiros com a copa de 1970 a partir de slogans como “Ninguém segura esse país” e de hinos do tipo “noventa milhões em ação, pra frente, Brasil do meu coração (…) Salve a seleção” e não surpreendentemente transformaram a conquista da copa de 1970 em uma verdadeira festa cívica.

 

Preto X Branco é um jogo de várzea que acontece anualmente nas proximidades do Ipiranga, em São Paulo. O evento é organizado pelo Clube Flor de São João Clímaco desde 1972 e ocorre no domingo que antecede o Natal. As equipes são compostas por jogadores que se autodeclaram negros ou brancos e os organizadores afirmam que o evento é uma confraternização onde não há lugar para o preconceito. Considerando que, para Gilberto Freyre, “o futebol popularizou-se de tal forma ao longo do tempo, que passou a ser uma verdadeira instituição nacional , condensando e acumulando velhas energias psíquicas e impulsos irracionais do homem brasileiro”, como podemos correlacionar Preto X Branco a esse pensamento?

Aprecio iniciativas como esta ou como manifestações de jogadores que entram em campo vestindo camisetas ou segurando cartazes contra o racismo. Mas sou cético quanto à sua real eficácia porque o problema do racismo no Brasil é bem mais complexo. A sua própria existência é negada por vários indivíduos em virtude da comparação com os casos sul africano e norte americano. Essa negação compõe um elemento fundamental do que o estudioso da questão negra Edward Telles denomina de “Racismo à brasileira”. Por se tratar de um problema complexo penso que o jogo preto x branco corrobora em certo nível a imagem mais ou menos harmônica das relações entre brancos e negros referida por Gilberto Freyre por que traz jogadores dos mais diferentes matizes de cor para celebrar a diversidade da cultura brasileira. Por outro lado, cada sujeito em campo continua sua vida após a partida e a grande questão que se mantém é: em que medida a educação, as propagandas, os programas televisivos e determinadas políticas públicas estão articuladas para desfazer estereótipos ligados aos brasileiros de cor negra e ao mesmo para dar formação e condições adequadas de reparação histórica que esta parcela da população nacional precisa? Penso que sem uma resposta apropriada a esta questão dificilmente viveremos um movimento democrático relativamente pleno.

 

A palavra racismo é geralmente interditada no discurso oficial para reafirmar o mito da democracia. Pensando nisso, é possível utilizar o jogo de futebol como um instrumento para compreender a sociedade brasileira em suas relações sociais?

Há diversos traços culturais que podem emergir a partir do olhar atento à dinâmica social dentro dos estádios. Nelson Rodrigues escreveu em “Pátria de Chuteiras” que o futebol ensinou o brasileiro a conhecer-se a si mesmo. Mas, tomando sua questão num escopo mais amplo, gostaria de pensar o problema a partir da imagem vinculada ao lugar social do negro. Penso haver, para este caso, duas formas de visualizar a dinâmica nos estádios como microcosmos da sociedade brasileira. Uma é pautada na imagem do Brasil miscigenado e isento de conflitos raciais. Nesta chave de interpretação a mistura de cores dos jogadores em campo pode veicular a percepção de um país que deu certo do ponto de vista da harmonização dos históricos problemas raciais e que alcançamos o status de uma democracia racial. A outra maneira seria deslocar o foco dos jogadores e direcioná-lo para outros participantes ligados ao futebol: os médicos e fisioterapeutas dos clubes, cartolas, dirigentes e outros profissionais bem remunerados, mas cujo trabalho pressupõe habilidades outras que as esperadas de um jogador. Se deslocamos o foco de análise para esses sujeitos, provavelmente ficaríamos surpresos com a redução de profissionais de cor negra. Acredito que neste ponto a dinâmica da atividade futebolística reverbera uma tendência brasileira, ou seja, as posições sociais alcançadas com o acumulo de uma formação educacional adequada são normalmente ocupadas por brasileiros de cor branca enquanto que as posições com menor exigência de qualificação são geralmente ocupadas por brasileiros negros e os lugares socialmente ocupados por estes últimos, considerados prestigiosos, são normalmente ligados à carreira em música (em algumas variantes específicas) e ao futebol. Essa é uma realidade enraizada profundamente na dinâmica social brasileira e cristalizada em nosso senso do que seja natural na sociedade. Os mecanismos e motivações aí envolvidos parecem exceder o escopo da questão levantada.

 

A CBF lançou uma campanha intitulada Somos Iguais e dentre as ações prevê denúncia anônima de qualquer tipo de manifestação preconceituosa em eventos esportivos. O jogo de várzea Preto X Branco se encaixa nesse contexto ou essa é mais uma história na mitologia do futebol que poderá nos revelar um outro Pelé?

Entendo que a força institucional da CBF, o apelo comunitário da iniciativa Preto X Branco ou mesmo a transformação de ídolos do futebol como Pelé em símbolos da possiblidade de mobilidade social dos negros, embora discutível, pode ter certo grau de eficácia. Mas elas só arranham a superfície de um problema com causas muito mais profundas e que não serão desarticuladas sem, por exemplo, uma observação mais efetiva da Lei Federal nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio, ou do repensar da maneira como brasileiros negros têm sido historicamente representados ou sub-representados em propagandas, filmes e novelas. Essas são iniciativas que lidam com a formação de uma mentalidade e com um real entendimento dos problemas ligados ao racismo no Brasil. Sem um debate honesto e bem informado deste problema dificilmente as iniciativas institucionais como as da CBF ultrapassarão os limites do politicamente correto.

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