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Edição nº 1 – 2014

Apesar de consumir anos de estudos dos mais ferrenhos especialistas e elucubrações dos cidadãos mais prosaicos, sem contar uma boa dose de achismos que perpassa a ambos, pode-se considerar senso comum o fato de a Arte ser uma espécie de espelho no qual a sociedade – seus hábitos, angústias e inquietações – vê-se refletida. Com a Literatura, obviamente aqui entendida como manifestação artística, não poderia ser diferente.

É só olhar para trás para reafirmar essa ideia. Aliás, ouso dizer que traz até uma certa sensação de segurança ao fazê-lo; ver os ideais gregos refletidos na Ilíada, Odisseia ou em grandes tragédias, bem como constatar Dante Alighieri dividido entre o céu o inferno em sua Divina Comédia, ou, ainda, em pleno século XVIII ver Goethe questionando a sociedade moderna em Fausto como um verdadeiro profeta, é reconfortante, pois, dessa maneira, podemos entender melhor o que fomos e quiçá o que seremos . No entanto, um olhar sincrônico sobre a nossa Literatura não nos traz as mesmas certezas e muito menos as mesmas seguranças. Como fez Chico Buarque em “Futuros Amantes”, o que os escafandristas – no futuro – dirão sobre a nossa fast Literatura atual?

Detendo-se em um olhar um pouco mais próximo, não se tem a resposta imediata – até porque isso seria de uma tremenda irresponsabilidade – mas há dados que podem ser considerados no mínimo dignos de reflexão e curiosidade: no último ano – 2013 – os campeões das listas de livros “mais vendidos” no Brasil foram aqueles pertencentes ao gênero de “autoajuda” e “exotéricos”: Nada a perder, de Edir Macedo (Editora Planeta), Kairós, do Padre Marcelo Rossi (Editora Principium) e muitos outros estão entre aqueles títulos que conseguiram um número expressivo de vendas para os padrões nacionais. Esse aspecto começa a ficar um pouco mais interessante ao se observar que, dentro dos livros intitulados como “romance de ficção”, também há largas doses de autoajuda. Façamos um recorte a título de exemplificação: o campeão máximo de audiência ao longo de 2013 – e que assim se mantém ao longo de 2014 – é o jovem escritor Jonh Green; autor de best sellers como “Quem é você, Alasca?”, “Teorema de Katherine” e a sensação “A culpa é das estrelas”: o norte-americano conseguiu um número de vendas que deixou a Editora Intrínseca rindo à toa.

Os conteúdos dos livros não apresentam nada que seja realmente original: a receita romance romântico, com uma pitada de aventura, mais um quê de mistério, coroados pelo bom e velho drama, fizeram com que, em pleno século XIX, os folhetins se tornassem uma verdadeira febre entre a burguesia brasileira; em uma rápida olhada na História, deparamo-nos com uma série de autores e livros que corroboram isso: José de Alencar – há relatos de pessoas que esperavam ansiosas nas portas das bancas de jornal a chegada de um novo capítulo de O Guarani, por exemplo-, Bernardo Guimarães – que, com sua Escrava Isaura, conseguiu a proeza de ser um sucesso como livro e, anos depois, tornou-se a telenovela brasileira mais vendida de todos os tempos – e Joaquim Manoel de Macedo – o seu ingênuo A Moreninha conseguiu agradar ao público da época de tal maneira, que foi lido efusivamente (afinal, pela primeira vez, o burguês que dominava o país se viu completamente retratado em uma obra de ficção).

Se originalidade no enredo não é o diferencial dos livros mais vendidos de ficção escritos hoje, algumas interrogações são colocadas na cabeça de quem, de maneira curiosa ainda que precária, interessa-se pelo assunto, como por exemplo: Qual é o segredo para essa aura de adoração que fora criada em torno deles? E um aspecto ainda mais relevante: qual é o elemento presente nesses livros que faz com que o público jovem cada vez mais se sinta arraigado a esse tipo de leitura? Talvez a palavra mágica que responda a essas e a outras perguntas seja identificação.

Já se disse nesse artigo como a Arte, de maneira geral, reflete os gostos da sociedade vigente; além disso, sabe-se que a própria sociedade gosta, de maneira geral, de ver-se retratada nela, pois é uma maneira de ver suas características elevadas ao status de “manifestação cultural”. Que os livros de autoajuda e esoterismo chegaram dispostos a preencher as lacunas que a sociedade moderna nos deixa com respostas e fórmulas mirabolantes para os problemas do dia a dia isso não é novidade. Há um vazio quase intermitente colocado no cotidiano do homem moderno, e tais livros nos dão a tão perseguida sensação de aconchego e compreensão em dias em que isso nos faz falta. É quase um clichê, mas, por exemplo, não podemos fugir da constatação de que o tempo na sociedade atual é algo cada vez mais escasso. O dia tem 24 horas, mas a sensação é de que elas são completamente insuficientes. Em praticamente todos os aspectos da vida moderna, vemos isso refletido: come-se – mal – e cada vez mais rápido; trabalha-se – muito – e com uma automatização que leva à estafa; entretenimento é oferecido a “ torto e a direita” – o que é bom – porém muitas vezes sem crivo nenhum, como uma qualidade muitas vezes questionável – para não dizer ruim – . E o homem em meio a isso tudo? Cansado, frustrado, alienado, sem tempo. E, muitas vezes, um cabedal de informações para uma reflexão mais assídua consome o que lhe é oferecido sem maiores inquietações.

Motivos para lacunas, como dito, são muitos. No entanto, nem todo mundo gosta de admitir que elas existem – até porque isso não é uma tarefa das mais agradáveis, além de virem com uma certa admissão de fraqueza – e ler livros de autoajuda e de cunho esotérico funciona quase como um atestado de que elas estão presentes.

Com isso, parece finalmente estabelecida uma linha de pensamento que leva ao porquê do sucesso de livros de ficção com cunho moral tão explícito: é uma maneira de ter acesso a uma Literatura que agrada às exigências de leitura do início do século XXI – linguagem acessível, reflexões que beiram a obviedade, narrativa ágil e personagens em sua maioria planas – permeados por “lições de vida” e situações cotidianas “difíceis” por que a maioria das pessoas passam – e portanto se identificam – sem ter de passar o atestado de que o livro está funcionando como uma válvula de escape. A autoajuda continua ali, mas implícita, mais fácil de ser digerida, disfarçada sobre a faceta de “romance de ficção”.

Cabe, por fim, terminar com uma provocação: não será muito pouco relegar à Literatura o papel de terapia, tirando dela uma das suas características mais fundamentais, que é justamente levar o leitor à inquietação – muita vez dolorosa – e consequente sensação de não pertencimento? Corremos um sério risco de cair em uma confortável, porém perigosa sensação de constante reconforto ao ler. Basta saber o que há de bom nisso.
 

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