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Edição nº 1 – 2014

Estádio Paulo Machado de Carvalho, domingo, 27 de abril de 2014, segunda rodada do campeonato brasileiro. O jogo do dia é entre dois clubes muito populares; o mandante Corinthians e o visitante Flamengo. Pelas ruas do bairro de Higienópolis, os torcedores chegam aos poucos, alguns atraídos pelo cheiro da churrasqueira acesa. O isopor está cheio de gelo e cerveja para os que são de beber. Já para os que preferem fazer barulho, os instrumentos foram afinados na véspera.

O cenário é muito familiar para mim e para os milhares de corintianos que frequentam os estádios de futebol, mas nesse dia o clima era de despedida. A partida ficou marcada como a última do Corinthians no Pacaembu, um local adquirido como casa por usucapião, como dizem os mais velhos.

“Filho, tô triste de me despedir do Pacaembu. Como vai ser lá na Arena? Será a mesma coisa?”, me pergunta o Sr. Nilton, um homem forte, negro, de 60 anos, ex-policial militar, que acompanha os jogos do Timão no alambrado sempre ao lado dos filhos Thiago e Adriano. Respondo meio sem jeito que o importante era vencer para fazer uma boa despedida. Mentira deslavada, todos estávamos com o mesmo sentimento de medo do novo, isso porque em três semanas seria inaugurada a moderníssima Arena Corinthians, palco até mesmo da abertura da Copa do Mundo.

O corintiano é um ser diferente, trata o time como uma religião e, se toda religião tem que ter uma igreja, certamente ela sempre foi o Pacaembu. Lá as missas são aos domingos à tarde, mas também podem acontecer aos sábados e nos meios de semana à noite. O fato é que, independente do horário ou da data, sempre os mesmos fiéis estão presentes nas arquibancadas, o setor mais popular do estádio.

Algumas regras de convívio são estabelecidas naquele recinto e não existe nenhum manual de conduta. O torcedor simplesmente sabe o que deve ser feito e qual o momento de tomar uma atitude. A primeira delas diz respeito ao arquirrival Palmeiras: é proibido usar verde. “Mano, meu olho é verde, mas eu preferia que fosse preto”, sempre me confidenciou o amigo Cleber, auxiliar de um escritório de advocacia e casado com a Viviane, a quem conheceu nas redondezas do próprio Pacaembu, quando ela tinha uma barraca de lanches herdada do pai.

Uma das atitudes mais bonitas que presenciei refere-se a essa regrinha quando vi o Claudio Ribeiro, torcedor das antigas, presidente da organizada Coração Corintiano e dono de um respeitoso cabelo black power, além de um sorriso desdentado, tirar a própria camisa e dar de presente para uma moça desavisada que estava usando a malfadada cor de alface. Uma atitude em pleno inverno paulistano, que fez o estádio inteiro comemorar como se fosse um gol.

“Eu odeio verde. Na minha feijoada nem couve tem. Dá um baita azar”, já dizia o Buião, personalidade das arquibancadas de sorriso fácil, mas que, quando fica bravo, sai de baixo. E para deixar esse meu amigo nervoso basta alguém não seguir um outro mandamento dos jogos do Corinthians: gritar gol antes do tempo. A galera acredita que essa simples palavra de três letras quando dita fora do momento certo afasta a possibilidade do gol.
“Certeza que foi esse cara aí do lado que tirou a bola”, culpa o contador Eduardo, um amigo bem mais calmo que o Buião, ao reclamar de um chute que triscou a trave e foi pela linha de fundo. Já os mais nervosos ficam procurando quem foi o infeliz que gritou gol antes da hora para passar aquele sermão.

É preciso que fique claro que qualquer outra atitude nesse momento de emoção é válida: agora, chuta, entra, vai… São palavras permitidas, mas quem está acostumado a frequentar a arquibancada já sabe disso e os desavisados são instruídos com a delicadeza ímpar do corintiano para jamais cometer essa gafe: “Mano, deixa a bola entrar para gritar gol!!!”.

Na arquibancada o sujeito tem que assistir aos jogos de pé. “Levanta c****, é jogo do Timão!!! Quer assistir sentado, fica no sofá de casa”, bradava a plenos pulmões um torcedor para o outro bem perto de mim. O cara estava cansado, tinha acabado de sentar, mas levantou sorrindo e passou a gritar Corinthians.

Realmente a arquibancada não é o melhor lugar, nem o mais confortável para assistir a uma partida de futebol. No início de cada tempo e após os gols, enormes bandeiras são levantadas e cobrem a visão de quem está lá para ver o jogo. Tem que se acostumar com isso, faz parte da festa, mas o cheiro de mofo daqueles panos gigantescos que só são lavados quando chove nos dias de jogo chega a dar enjoo e até mesmo falta de ar para os mais claustrofóbicos.

O esquema para levar os chamados bandeirões até o estádio e levantá-los fica a cargo das torcidas organizadas, que geralmente colocam os mais jovens nessa função, numa espécie de estágio. A organização é militar, leva horas e demanda dezenas de torcedores. Para ter uma ideia, a Gaviões da Fiel, principal torcida do Corinthians, é a dona do maior bandeirão do Brasil, que mede 15.000 m².

Naquele domingo não foi esse artefato que cobriu as arquibancadas e sim um mais modesto onde estavam desenhados o estádio do Pacaembu e os dizeres “Saudosa Maloca”, em referência à música de Adoniran Barbosa. Uma espécie de agradecimento ao local em que o corintiano comemorou muitas glórias, a maior delas, talvez, a conquista da Libertadores da América contra o Boca Juniors no dia 4 de julho de 2012.

Nessa data eu fui apresentado – mesmo que de forma indireta – ao Sr. José Corregio, o Zezinho da UTI. Ele estava em La Bombonera, na Argentina, para assistir ao primeiro dos jogos da final da Libertadores e teve um principio de AVC. Foi para o hospital, voltou ao Brasil e ficou na UTI do São Luiz, no Jardim Anália Franco, mas convenceu o médico de que precisava ir para o jogo decisivo. E lá estava ele onde contou essa história ao repórter Alexandre Silvestre, da TV Gazeta.

Quase dois anos depois descobri que aquele bom velhinho de cabelos brancos e sorriso simpático era o pai do engenheiro Ricardo Corregio, da Odebrecht, um dos principais responsáveis pela construção da Arena Corinthians, onde no dia 17 maio de 2014 o Timão inaugurou a nova casa contra o Figueirense.

As diferenças entre o Pacaembu e a Arena começam pelo resultado do jogo. Se na despedida do histórico estádio, o Timão venceu o Flamengo por 2 a 0, na inauguração da nova casa, a equipe perdeu por 1 a 0 para o time de Santa Catarina. Mas não ficou só nisso, a mudança mais drástica foi o fim da arquibancada, um mal de todas as modernas arenas construídas para a Copa no Brasil.

O setor popular do estádio, onde os torcedores não sentam, não existe na nova Arena. Lá todos os lugares contam com confortáveis cadeiras numeradas. “É padrão Fifa”, brincam os mais bem-humorados, mas a regra continua: quer assistir ao jogo sentado, fica no sofá. Em longo prazo a situação pode até mudar, mas eu duvido. A tradição corintiana deve permanecer, assim como o ódio ao verde.

Essa ojeriza das arquibancadas é até motivada pela diretoria do clube na nova casa. Uma das partes da cobertura da Arena não estava pronta na inauguração porque o vidro que deveria ser utilizado, quando refletido à luz do sol, acabava ficando adivinha de que cor? Um novo produto foi encomendado e não entregue a tempo, por isso, muitos torcedores acabaram se molhando durante a chuva torrencial que caiu naquele domingo.

Além disso, os monitores estavam trajando um colete que tinha o verde limão como uma das cores e não foram perdoados pela fiel. “Tira esse verde aí mermão!”, ordenava um corintiano mais exaltado. Se o Ribeiro estivesse vivo certamente iria dar um jeito de solucionar esse problema doando algumas camisetas.

“Você é casado cinquenta anos com a mesma mulher, ama ela, mas o médico deixa você ver ela morrer. Para consolar-se, você arruma uma namorada nova, linda, de 19 anos e está muito feliz. Mas sempre vai lembrar do amor antigo”. Essa frase foi dita por Luis Paulo Rosenberg, vice-presidente de marketing do Corinthians em 2011, época em que o novo estádio foi idealizado, e resume talvez um pouco do sentimento de alguns torcedores.

Outros já pensam como a torcida do Juventus, que exibe no tradicional estádio Conde Rodolfo Crespi nos dias de jogo do time, uma faixa com os dizeres “Ódio ao futebol moderno”. Pode parecer saudosismo, mas o esporte mais apaixonante do mundo mudou muito nas últimas décadas. A maneira de torcer está sendo transformada aos poucos, mas algumas tradições que ninguém sabe como começaram jamais vão acabar. É viver para ver.
 

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