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Edição Especial – Junho de 2016

 

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Mariana Castro | Foto: Acervo Pessoal

Mariana Castro, sobre o tsunami da Ásia

“Em um primeiro momento, pareceu pequeno. Entenda: em 2004, quando eu era editora de Internacional no site IG, as notícias chegavam fundamentalmente pelas agências internacionais. E demoravam! Recebemos um aviso de uma onda gigante. Mas gigante é um termo subjetivo. Não se sabia sobre vítimas, danos. Nada. Além disso, estávamos em esquema de plantão com meia equipe, porque era manhã do dia 26 de dezembro, logo depois do Natal.

No início, pareceu pequeno. Não publicamos as primeiras notas, inclusive. Não dava para imaginar que seria uma tragédia que deixaria mais de 200 mil mortos. Mas demos alguns pequenos alertas sobre o assunto. Claro, isso foi antes da enxurrada de notas atualizadas a todo momento com o número de vítimas.

O que se seguiu foram dias intensos de muito trabalho, falando com frequência sobre tsunami. Procuramos por pessoas, na maior parte jornalistas, que estavam visitando aquela região da Ásia ou eram correspondentes lá para nos aproximarmos mais das informações.

Não foi fácil falar sobre isso. Pessoalmente, era tudo muito emocional, muito impactante. Profissionalmente, porque tsunami não era um termo tão comum quanto ficou depois da tragédia. Foi preciso aprender na marra”.

Caio Quero, a respeito do Incêndio da Boate Kiss

“A lembrança mais marcante é o cheiro. Mas eu vou chegar nisso. Eu trabalhava na redação da BBC do Rio de Janeiro e acordei no domingo do incêndio com o aviso do meu editor sobre o incidente. Comprei passagens para Porto Alegre, levei mais 6 horas até Santa Maria, e cheguei na boate por volta de 22h. Não estavam os 200 corpos, mas já havia 50 e nós tínhamos a dimensão do incêndio. Era uma tragédia.

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Caio Quero | Foto: Acervo Pessoal

A gente tenta esquecer, enquanto está lá. É um ritmo tão frenético que você precisa se distanciar. As pessoas que estavam nesse ginásio onde os corpos foram reunidos trabalhavam. Não havia gente chorando. Tinham médicos tratando de feridos, psicólogos falando com parentes, jornalistas cobrindo, voluntários servindo comida. E eu também estava naquele lugar por isso. Fiz o possível para me distanciar. Era difícil, porque as pessoas tinham reações bizarras. As piadas, por exemplo, ou as risadas meio descabidas. O que mais acontecia era voluntário vir me mostrar foto das pilhas de corpos. É a reação bizarra de uma cidade pequena que nunca viu uma tragédia como essa. Pelos dois segundos que vi, essa imagem me marcou. Eram pessoas. Mortos, empilhados em um canto da boate, para onde tinham ido achando que existia uma saída. Pessoas que se pisotearam enquanto lutavam por ar. Ninguém morreu queimado. Morreram asfixiados. Essa foto me lembrou – ainda me lembra, quando eu penso nisso – aquelas imagens das câmaras de gás nazistas.

No segundo ou terceiro dia, a realidade caiu em mim. Eu tinha passado tanto tempo frenético, falando com famílias, com voluntários, com a prefeitura da cidade, que não tinha me tocado, até então, que eu estava trabalhando no meio de corpos. Que podia ser eu. Meu irmão. E só cai por mim quando senti o cheiro dos corpos em decomposição. Eu só me liguei nisso porque aquilo entrou, literalmente, em mim. Minha maior memória é a olfativa. É a mesma razão pela qual eu me lembro da tragédia no morro do Bumba, por exemplo.

Mas eu também me recordo bem das histórias. A que mais mexeu comigo foi a de um homem que, desesperado por ajudar, prendia a respiração para entrar na boate e agarrava as pessoas pelas costas para tirá-las da boate. Muitas ele tinha encontrado desmaiadas, perto da porta, a passos de sobreviver, mas sem forças para continuar. Uma delas era o irmão dele. Ele o salvou sem enxergar quem era. Isso foi muito bonito: a rede que se formou, em solidariedade, pessoas como esse cara que fizeram o que podiam, que se arriscaram, para ajudar.

Não tive pesadelos, sonhos. Mas fiquei uma semana baqueado, física e psicologicamente. Meu emocional não estava preparado para andar pelas ruas da cidade e sentir o luto, ouvir o silêncio. Não estava preparado para encontrar famílias e querer saber da morte, de suas histórias tristes. Na verdade, acho que ninguém nunca está preparado para isso”.

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Fernando Cavalcanti | Foto: Acervo Pessoal

Fernando Cavalcanti, primeiro fotógrafo a retratar os destroços do acidente da banda Mamonas Assassinas

“Começou com um plantão de madrugada comum no Jornal Notícias Populares, chato, monótono e com uma pitada de ansiedade. Fomos rodando de delegacia em delegacia, eu ‘escaneando’ a frequência da polícia no meu rádio e o repórter ligando para suas fontes em busca de algum crime que ‘valesse a pena’. Foi uma cobertura que me marcou. Não pelas mortes, porque a elas eu já estava acostumado. Mas me levou a refletir, mais tarde, sobre a espetacularização da tragédia. Especialmente porque naquele caso não havia denúncia alguma a fazer.

Hoje, esse segue sendo o meu trabalho mais lembrado. É aquele que, para o bem e para mal, vai me acompanhar a vida inteira. Na hora, fui movido por aquela dose mais forte de adrenalina e pela sensação de estar fazendo alguma coisa grande, que no começo de carreira tanto motiva. Os dias seguintes à tragédia foram confusos. Precisei suportar a repercussão do trabalho e, mais adiante, refletir sobre o que e como foi feito. Eu não tinha estrutura emocional para lidar com uma cobertura daquela dimensão.

Mesmo assim, não me envolvi muito emocionalmente. Na hora definitivamente não. Nos dias após a tragédia fiquei impressionado com a quantidade de dor que aquele acidente causou às pessoas – muitas delas, fãs que sequer conheciam os integrantes da banda. Quero dizer: os trabalhos que mais me marcaram foram sempre os que retratavam o sofrimento e a miséria. Afinal, a mãe chorando em cima do corpo de um filho morto é sempre muito mais marcante do que o corpo em si.

De todos os trabalhos que fiz, incluindo o terremoto e o tsunami no Chile, por exemplo, o que mais me marcou emocionalmente foi uma reintegração de posse na qual o barulho dos tratores que passavam por cima dos barracos se misturava ao choro compulsivo dos moradores, que iam vendo todos seus bens serem esmagados. Essa memória, de fato, não me larga nunca”.

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Eduardo Martins | Foto: Acervo Pessoal

Eduardo Martins, que acompanhou o “caso da família Pesseghini”

“Uma história que cobri que me marcou bastante foi o caso Pesseghini, na qual um menino foi acusado de matar os pais – que eram policiais -, a avó e depois se matar. A primeira lembrança que me traz é muita incerteza. Lembro que fiquei vários dias e noites me perguntando sobre o que, de fato, houve. E até hoje permanece o mistério.

Lembro que, como repórter da Revista Veja, fui até o local onde aconteceram os assassinatos, conversei com os vizinhos; estive no velório de cinco caixões, todos da mesma família; conversei com familiares, fiquei plantado na frente do DHPP para conseguir alguma coisa dos investigadores.

Foi uma cobertura bem produtiva. Sobre a questão profissional, acho que me levou à conclusão de que o bom jornalismo, na minha opinião, se resume a ter uma boa história e que isso só é possível se você apura, apura e apura ainda mais quando já acha que está suficiente.

Em relação à questão emocional, acho que, apesar de envolver morte, a cobertura de casos como esse nos deixam mais frios. Mas eu não vejo isso como um fator positivo”.

Mayra Sartorato, acerca da morte de um torcedor atingido por um sinalizador

“Em 2013, numa madrugada de quinta-feira, o boliviano Kevin Espada realizou o sonho de ir pela primeira vez ao estádio de futebol do seu time do coração, o San José. Não demorou muito, no entanto, para esse sonho se tornar pesadelo: o torcedor de 14 anos morreu depois de ser atingido no olho por um sinalizador da torcida adversária, o Corinthians.

Na ocasião repórter no FOX Sports, eu não estava em campo. De São Paulo, onde acompanhava na cabine de imprensa, fiquei sabendo das primeiras notícias. Eram rasas. De início, falava-se em lesões leves. Logo, eram ferimentos graves. Até, finalmente, morte.

Não consigo me esquecer da foto que replicamos, incessantemente, do garoto. Óculos escuros, camisa listrada em verde e amarelo. A boa e velha fórmula de humanizar a morte. Caçar o clique. Fisgar o leitor. Lá estávamos nós, horas a fio, desenterrando fatos sobre o Kevin. Ligando para os seus pais. Colegas. Ídolos. Contando – mal, ainda por cima – sua história. Tudo no melhor esquema ‘espreme (o jornal) para sair sangue’

Ficamos dias falando sobre o tema, sempre com o mesmo viés sensacionalista. Falamos sobre a prisão dos corintianos, das condições sub-humanas as quais foram submetidos, sobre seu velório. Mas nunca com o propósito correto, a meu ver. Não acho que fizemos jus à história dele. E, no final das contas, essa é a parte que mais me aterroriza dessa lembrança”.