Visto de cima da ponte, sua presença inquieta. Seja por sua imponência ou por suas paredes sujas, seja pela curiosidade por sua história ou por seu abandono, o Casarão do Anastásio insiste em, silenciosamente, nos chamar a atenção. O imóvel, localizado na Marginal do Tietê, no acesso à rodovia Anhanguera, é uma das muitas construções históricas da cidade de São Paulo, mas uma das poucas a apresentar o estilo neocolonial hispânico, o que o torna bastante cenográfico.
Sua construção data de 1920. Sua história, contudo, é bem mais antiga. O primeiro dono do terreno onde está o Casarão do Anastácio – o qual equivale a um parque e meio da Aclimação (180 mil metros quadrados) – foi o coronel Anastácio de Freitas Trancoso, membro do Governo Provisório de São Paulo, em 1823. Posteriormente, em 1856, o terreno foi vendido ao brigadeiro Tobias de Aguiar e à sua mulher, a marquesa de Santos. Com a morte de Tobias, a marquesa se tornou sua única proprietária, mantendo a terra até a sua morte, em 1867.
Domitila de Castro e Mello, a marquesa de Santos – conhecida como a mais famosa amante do imperador Dom Pedro I – teria desenvolvido o hábito de fumar com os escravos em um local nos fundos da fazenda Anastácio, no terreno do Casarão do Anastásio. Alguns indícios históricos e relatos de moradores da região chegam a indicar que ali teria funcionado o único quilombo da capital paulistana. Após a sua morte, seus herdeiros venderam uma parte do terreno para a Ligth and Power, empresa canadense que desenvolvia atividades de geração e distribuição de energia elétrica; o restante foi vendido em 1917 à Companhia Armour do Brasil. Com isso, a antiga casa da fazenda, construída em taipa de pilão, foi demolida. A atual casa foi construída pela Companhia Armour do Brasil para abrigar os funcionários do seu frigorífico.
Apesar da importância histórica, o terreno e o casarão permanecem abandonados, como bem podemos ver em algumas das fotos de Bernardo Borges tiradas no local e expostas em sua página no Flickr. O tombamento do imóvel se deu em 2013, após 21 anos da abertura do processo. Segundo Edson Domingues, antropólogo responsável por protocolar o pedido de tombamento no órgão da Secretaria Municipal de Cultura em 1992, a demora se deu em decorrência da pouca estrutura do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH). “Enquanto reuníamos documentos, fotos, depoimentos sobre a história do imóvel, o DPH não havia constituído o processo físico. Falta equipe para a gestão do patrimônio cultural em São Paulo”, declara Edson.
No Brasil, o tombamento de bens históricos teve início em 1937, por meio da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atualmente denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Ao contrário do que muitos imaginam, o tombamento não se dá apenas a locais luxuosos ou centenários, tanto que existem algumas entidades de preservação da arquitetura moderna, por exemplo. Há também tombamentos que não ocorreram por questões arquitetônicas, como explica o arquiteto Alexandre Nakano. “Em São Paulo, temos o tombamento do Teatro Municipal – ícone histórico e arquitetônico para a cidade – e do Belas Artes – este mais por valor afetivo (uso pela população, valorização do cinema de rua etc.) do que por características arquitetônicas do imóvel”. Assim, muitos imóveis passam por restauro e processos de recuperação pelo caráter, muitas vezes, simbólico. Imóveis que apresentam certo valor afetivo para a população tendem a ter maior incentivo e maior pressão popular para que sejam recuperados.
Para Edson Domingues, “o Casarão é tido pelos moradores do entorno como alguém mais idoso, uma referência de carinho”. Em 2007, o terreno foi adquirido pela companhia norte-americana Tishman Speyer. À época, previa-se a transformação do imóvel no primeiro centro cultural de Pirituba. Contudo, o projeto ainda não foi concretizado, e desde então gera questionamentos pela população, que teme pelo imóvel – importante marco histórico e paisagístico da cidade. “Pode-se afirmar que a cidade não possui um marco regulatório que exija a recuperação dos bens culturais. Em São Paulo, a política de preservação do patrimônio cultural é regida pela mão invisível do mercado”, diz Edson.
Questionado sobre em que deveria ser transformado o Casarão e sobre a possibilidade de ele se tornar parte de um grande centro comercial, o antropólogo é enfático: “a proposta acordada em audiência pública realizada pela Secretaria do Verde e Meio Ambiente em 2007 foi de garantir a transformação do imóvel em espaço cultural. A região de Pirituba tem 400 mil habitantes e nenhum cinema, teatro ou auditório para apresentação de grupos que fazem do bairro um referencial de produção cultural”.