Acordei na manhã do dia 4 de dezembro de 2013 de mais um sonho intranquilo. Talvez esse tenha sido o menos intranquilo de uma série de pesadelos envolvendo a banca, que naquela tarde finalmente daria seu veredicto a respeito do meu Trabalho de Conclusão de Curso na Cásper, a que me dediquei ao longo do último ano da faculdade.
Daquela vez, eram vagos pensamentos oníricos de ausência: acho que faltava um papel para anotar os comentários dos avaliadores. Era pouca coisa, uma bobagem, mas faltava e era o mínimo para me deixar ainda mais desesperada. Mesmo assim não era nada comparável aos sonhos que estavam me ocorrendo até então, já havia esquecido de levar meu próprio exemplar da monografia ou quando certa vez resolvi de última hora visitar o cabeleireiro (estou mesmo precisando de um corte depois deste ano atribulado) minutos antes da minha arguição, mas a coisa toda atrasou e eu, mesmo sobrevoando o Minhocão, como é popularmente chamada a via expressa do Elevado Costa e Silva, que corta o centro da cidade de São Paulo, não cheguei a tempo.
O pior deles: a banca ocorria em um auditório imenso e contava com um público digno da estreia do novo Hobbit. Só que muitas pessoas estavam lá por engano, entraram querendo ver outra coisa. Eu falava, falava, falava, ninguém ouvia, nem mesmo os avaliadores. Porém, é necessário manter a calma, não? Como se nada mais importasse, havia ali um roteiro, uma ordem das falas, e eu precisava cumpri-la.
Com esse mesmo pensamento comecei a utilizar os primeiros 15 minutos que me cabiam. Embora minha voz falhasse (praticamente desaparecesse), puderam me ouvir. Respirando fundo, contei como cheguei à ideia de ler o conto As babas do diabo, de Julio Cortázar, a partir dos conceitos de abertura (Umberto Eco), a fruição (Roland Barthes), a poética da destruição (Davi Arrigucci Jr.), como o texto interage com o leitor (Wolfgang Iser) e como tudo isso pode indicar a herança duchampiana na obra em questão (Graciela Speranza). Finalmente, o que aprendi com isso tudo, o que aprendi a respeito do jornalismo (afinal era esse o curso da conclusão).
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Digo que, embora seja uma péssima oradora e não consiga articular lé com cré quando falo, encarar a banca é o mais fácil. Difícil é se envolver tanto com um projeto durante um ano inteiro: não houve dia em que eu não tenha pensado, ainda que minimamente, em Cortázar. Quando estava me dedicando à monografia e quando não estava: ai meu Deus, devia estar lendo, fichando, escrevendo, não assistindo a mais um episódio de Mad Men.
Como uma amiga disse esses dias, o TCC faz parte da gente como uma extensão do corpo: se ela me olhava em uma conversa, era como se eu tivesse me transmutado na a ideia em que estava trabalhando ou ela se materializasse apoiando-se nos meus ombros. A tendinite que o diga.
Quando esse peso finalmente vai embora – ou resolve aproveitar o verão e tira férias, pelo menos – mais do que “missão cumprida” parece que estamos mesmo é de ressaca. Desse modo, caindo de volta em uma realidade menos monotemática: um mundo inteiro fora da Faculdade insinua suas possibilidades. Sentindo o peso, agora do futuro. O medinho, esse não passa, acho e espero que nunca.
Mas como é que a gente pode ter medo da banca depois de tanta dedicação? Eu ouvia isso, “fica tranqüila”, me diziam, “vai dar tudo certo”. Olhando para trás, é claro que me desesperava diante da possibilidade de uma retumbante reprovação. Ou que a banca fosse, não sei, injusta (o que de longe não aconteceu comigo). A gente nunca sabe, a gente nunca sabe, repetia a mim mesma. E não importa o que os outros digam: a aprovação vai ser finalmente sempre uma tremenda surpresa, que desanda em lágrimas em graduandos do tipo mais sensível. Tipo eu.
No entanto, passados alguns dias, começo a achar que talvez temesse mesmo viver sem meu tema, sem uma orientação que me desse o tom. Sem aquela paixão trabalhosa em que me apoiar. Que a monografia simplesmente se desapegasse de mim e, puf!, acabou junto com as outras coisas. Quem sabe tanto sonho e desespero fosse isso: o não querer esquecer o projeto, não deixar que a vida e suas correrias o tirem de mim.
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Se me permitem, gostaria de reproduzir aqui o parágrafo final da minha defesa:
Aprendi com Cortázar que as convenções estão aí para serem reconstruídas. Que automatizar nossa relação com o mundo é uma perda de tempo e de diversão. Que não dá para pensar na realidade sem considerar o avesso dela, sem considerar o seu duplo (o que no jornalismo chamaríamos de pensar sempre nos contrapontos e tentar ouvir o “outro lado”). Que devemos estar sujeitos e abertos ao insólito, aos acontecimentos desconcertantes que rompem com a ordem das coisas e instauram o inexplicável. As coisas não precisam de explicação.
Que, apesar de a história e os absurdos nos provarem o tempo todo o contrário, precisamos acreditar na humanidade. Mas essa deve ser uma crença que passe longe da perspectiva antropocêntrica e cartesiana. Que a construção de sentidos nunca acontece em uma via de mão única – e aí precisamos estar sempre permeáveis, sempre fazer parte de todas as coisas e deixar que todas as coisas sempre façam parte de nós em uma espécie de “cosmovisão”. Enfim, ser mais como uma esponja, essa imagem de que Julio tanto gostava.
E que a palavra, literária ou não, deve ser a nossa fronteira de resistência.
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Por fim, graduandos do futuro que por acaso leiam isto aqui: desculpem pelas palavras tortas. Talvez não tenha assimilado muito corretamente o que aconteceu. E se joguem, que um trabalho tão grande de produção de conhecimento, assim, é também uma forma de transcendência. É isso, se joguem.