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Professora Michelle Prazeres faz sua apresentação | Crédito: Laura Uliana

Professora Michelle Prazeres faz sua apresentação | Crédito: Fernanda Grillo

Professores são espécimes interessantíssimos quando se trata de adaptação ao habitat no qual são inseridos. Na relação aluno-professor em sala de aula, o papel expositivo e por vezes, sem querer, disciplinar austeriza até a personalidade mais alegre. Outras vezes, é justo o contrário que acontece: os mais festivos são os mais distintos quando em contextos adversos. Não há como predizer que uma menor austeridade signifique que os ventos são alísios naquele determinado ambiente. A mudança de comportamento se dá simplesmente porque são submetidos a experiências diferentes em cada espaço. Ainda assim, é curioso identificar a seriedade com que exemplos da espécie se portam frente aos semelhantes, enquanto que em sala de aula são os que mais riem das próprias piadas.

Para um aluno-observador, some-se a essas curiosas nuances do comportamento o diálogo entre um pós-doutor, doutores, mestres, pós-graduandos, graduados e duas solitárias primeiroanistas de Jornalismo, e talvez faça compreender a singularidade do Iº Seminário de Tecnologia no Ensino Superior da Cásper Líbero.

A ideia para o Seminário começou com uma provocação. Em maio deste ano, o professor Carlos Costa, coordenador do curso de Jornalismo e responsável pela mediação e introdução das falas desse primeiro dia do Seminário, recebeu um e-mail de um professor do curso. A mensagem encaminhava um artigo publicado na revista New Yorker sobre as consequências do uso de celulares em sala de aula. O coordenador compartilhou o artigo com todos os docentes do curso. Foi o início de um diálogo a respeito da utilização de tecnologias nos ambientes de ensino. O smarthphone deveria ou não ser proibido em sala de aula, como sugeria o artigo? Houve uma espontânea e intensa troca de opiniões entre os professores, numa animada discussão online. Estimulados pelo debate, os professores aceitaram expor suas opiniões em um simpósio organizado pelos professores Bianca Santana, Dimas Kunsch, José Eugenio Menezes, Fabrício Tavares, Gaya Machado, João Alexandre Peschanski, Luís Mauro Sá Martino, Michelle Prazeres e Regina Soler. O encontro teve lugar na sala Aloysio Biondi, no 5º andar da faculdade, e contou com a participação de alunos e pesquisadores da Cásper Líbero.

Os mitos a serviço da tecnologia

Na mitologia grega, Ícaro era filho de Dédalo, homem conhecido por suas invenções que simbolizavam a engenhosidade humana, disse o professor de filosofia Francisco José Nunes, primeiro a falar na rodada inicial da mesa de debates. Um dia, ao provocar a ira do rei Minos de Creta, Dédalo e seu filho Ícaro foram jogados em um labirinto. Dédalo sabia que a prisão era intransponível e que Minos controlava mar e terra, sendo impossível escapar por estes meios. Sendo assim, a única maneira de escapar seria pelo ar. Dédalo projetou asas, juntando penas de aves, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. Estando o trabalho pronto, equipou Ícaro e o ensinou a voar. Antes do voo final, advertiu o filho de que deveriam voar a uma altura média, nem tão próximo do sol, para que o calor não derretesse a cera que colava as penas, nem tão baixo que o mar pudesse molhá-las. Ícaro, no entanto, deslumbrou-se com a bela imagem do sol e, sentindo-se atraído, voou em sua direção, esquecendo-se das orientações do pai. A cera das asas começou rapidamente a derreter e logo Ícaro caiu no mar. Para o professor Francisco Nunes, o mito explica alguns termos que regem o comportamento de quem tem acesso à tecnologia. “Tecnototemismo” é a tendência de tratar os recursos tecnológicos como totens de poderes mágicos, fazendo poderosos quem dela se apropria. “Tecnofilia” é o amor e o apreço pelos novos recursos e “tecnofobia” é o comportamento de quem percebe mais males na tecnologia e não ousa aproximar-se. O professor ainda pontua ser interessante o fato de o mito ter sido escrito há tanto tempo e, ainda assim, fazer referência ao contexto de novidades tecnológicas que tanto perturba professores e alunos.

Alunas relatam suas experiências | Crédito: Yuri Andreoli

Alunas relatam suas experiências | Crédito: Yuri Andreoli

A professora Ivonete Ramadan, que leciona Língua Portuguesa para os alunos do 1º ano de Jornalismo, também fez uso da mitologia grega para metaforizar o objeto técnico como instituidor de valores. Prokrustas era uma personagem louca que sequestrava vítimas na estrada. Levava-as para sua casa e as moldava de acordo com o tamanho de sua cama-modelo. Caso a vítima fosse grande demais, cortava-lhe os pés. Caso fosse pequena, amarrava cordas em volta dos tornozelos e puxava as vítimas até esticá-las, adequando-as ao tamanho da cama. Para a professora, o maior desperdício da internet é obrigar que a semântica e o conteúdo de um texto preparado para outra plataforma sejam moldados para caber no leito virtual. Cita o exemplo de um convite para um evento no Facebook: as opções, “aceitar”, “não sei” e “recusar” não são suficientes para expressar a subjetividade e as nuances de uma possível resposta à pergunta. Quanto à questão do uso das tecnologias, a professora diz ser impossível negá-lo. “Uso celular, e-mail e até exames por imagem. Não posso ser cínica ao usar tecnologia e falar mal dela.”

Relatos e diagnósticos

Para o professor Evandro Lobão, que leciona Métodos de Pesquisa no curso de Jornalismo, a tecnologia e a área de pesquisa seguem a tendência de unirem-se cada vez mais. Diz, porém, que a proibição do uso de celulares nas salas de aula tem consequências polarizadas. Contribui com a diminuição de possibilidades de escape dos alunos mais desatentos, mas restringe a autonomia do aluno. “Além disso, soaria estranho limitar o acesso a informações para alunos de uma escola de Comunicação.”

Professor Liráucio Girardi: dez anos de experimentação | Crédito: Laura Uliana

Professor Liráucio Girardi: dez anos de experimentação | Crédito: Fernanda Grillo

Comprovando o diagnóstico, as alunas do 3º ano de Jornalismo, Marília Carrera e Mariana Diello, contribuíram com a exposição dos resultados de um trabalho coordenado pelo professor João Peschanski e produzidos pelos alunos da Cásper Líbero em parceria com a Wikipédia. Apresentaram uma pesquisa feita com as universidades que passaram pelo mesmo procedimento colaborativo, chegando a um total de 36 projetos ao redor do mundo que tiveram como resultado a publicação de verbetes produzidos por alunos de Ensino Médio, cursinhos, graduações e pós-graduações. Os projetos serviram para quebrar a resistência ao uso da plataforma como fonte de informação e incentivar a edição dos conteúdos por alunos e professores.

O professor doutor Liráucio Girardi Júnior também defendeu em sua exposição o uso de plataformas interativas como ferramentas que atraiam a atenção dos alunos. Contou que experimenta diferentes sites e plataformas há dez anos e que, ainda que o resultado não tenha sido massivo entre os alunos, sente que há uma melhoria no fornecimento do conteúdo utilizado em sala de aula. Entretanto, não é na plataforma que reside o segredo para a perfeita interação entre sala de aula e tecnologia. O professor diz que esses novos dispositivos são apenas uma releitura do ambiente tradicional da aula. O material é colocado à disposição de uma maneira que cativa o aluno de hoje, que tem um jeito diferente do aluno de antes. O ensinamento, frisa o professor, “ainda é baseado no relacionamento cara-a-cara de uma sala de aula”.

(Re)discutir a sala de aula: tentativa e erro

Para a maioria dos alunos das áreas da Comunicação, que preferem as letras aos números, química orgânica foi um pesadelo no Ensino Médio. Não para o professor doutor Luís Mauro Sá Martino. Quando frequentava a escola pública e pensava que nunca iria suportar um assunto tão complicado, surgiu em sua vida um professor que mudou a concepção de “aula boa”. Com recursos tirados do próprio bolso, o mestre utilizou-se de produtos inflamáveis e queimou fotos de políticos da época enquanto explicava a corrosão da celulose. Para Luís Mauro, as fotos dos políticos tinham o papel que a tecnologia hoje pode vir a ter. É uma auxiliar na busca da compreensão por parte dos alunos, não substituta do papel do professor. Queimar fotos de políticos era algo legal e diferente, assim como usar e falar sobre o Facebook também o é. “Usando tecnologias simples, os professores traziam a vida real para a sala de aula. A escola é um dispositivo de controle quando o que é legal fica para fora das salas.” Para o professor, a tecnologia nos faz repensar a sala de aula. Não é possível manter o mesmo sistema de ensino para uma geração cuja velocidade de aprendizado é a mesma com que abas são abertas no computador, e os professores que tiveram aula de datilografia na faculdade precisam estar predispostos a acompanhá-los. “Não é a tecnologia que representa um desafio, são as relações humanas que estão sendo reconstruídas.”

Professor Luís Mauro durante sua apresentação | Crédito: Fernanda Grillo

Professor Luís Mauro durante sua apresentação | Crédito: Fernanda Grillo

“Experimentar, não ter medo de errar”, explicou a professora doutora Michelle Prazeres em sua exposição. É necessário pensar na relação professor/tecnologia/aluno a partir do potencial dos dispositivos como repertório do processo educativo e fazer uma reflexão sobre a tecnologia ser uma potência para a educação inovadora. A professora explicou que cabe ao professor repensar os recursos como possíveis extensões da sala de aula e que, nesse momento, a atitude prática a ser tomada é a experimentação. “Estamos em processo de discussão por enquanto, o que já é um grande avanço. É necessário construirmos coletivamente uma visão que englobe a cibercultura e a possível potencialização do processo educativo, com o cuidado de não reproduzirmos discursos de tecnofobia ou tecnofilia. O que está em jogo são os contextos e os usos possíveis de acordo com estes contextos.”

O corpo entre as dimensões

Vilém Flusser nasceu em Praga em 1920 e morreu, aos 70 anos, à beira da década que consolidaria a internet. Premeditou, no entanto, que turbulências viriam do passeio entre a lentidão do corpo humano e o desenrolar acelerado das tecnologias. Para Flusser, fazemos uma viagem constante entre quatro etapas que surgiram ao longo da história. A primeira, tridimensional, é a relação corpo a corpo, o “falar na cara” e pegar na mão. A segunda, a imagem bidimensional, a terceira, a linha escrita, unidimensional e, por fim, os dígitos (CPF, algoritmos) como nulodimensional. Para o professor doutor José Eugenio de Menezes, autor do artigo Comunicação, espaço e tempo: Vilém Flusser e os processos de vinculação, a primeira relação é a mais trabalhosa e, por isso, a mais necessária em sala de aula. Cabe ao professor fazer um resgate do corpo na comunicação. A última, nulodimensional, é o espaço de compartilhamento da viagem pelas dimensões. O professor cita o vídeo de uma criança brincado e rindo como um impulsionador de um passeio do tridimensional para o nulodimensional – o que gera o vídeo – e a viagem de volta, do nulo para o tridimensional, que, para quem o assiste, é provocador de uma vontade de repetir o feito.

A reação dos professores ao exporem suas falas diante de seus colegas e alunos é a retomada do tridimensional de Flusser. A interferência das emoções e o comportamento físico que muda de acordo com o ambiente contrasta com a possibilidade do conteúdo apresentado ter sido unicamente disponibilizado na internet, o que limitaria a absorção das informações do seminário à leitura e, quem sabe, visualização de um vídeo.

A interpretação do ambiente e da reação de cada expositor teve papel fundamental na absorção do conteúdo apresentado, além de ter provado que a educação só acontece com a ajuda e a condução de um elemento humano, o professor.