O ano era de 1970 e, como qualquer criança de 12 anos, Mauro estava jogando futebol de botão na casa de seus pais, em Belo Horizonte. Sua mãe, aflita, falava ao telefone, querendo saber se o marido, Daniel, já saíra do trabalho. Ele estava atrasado para as férias do casal. Mauro, é claro, não entendia – e nem precisava, nem deveria – por que seus pais, de repente, estavam saindo de férias. O espectador, porém, sabe que em 1970, durante um dos períodos mais violentos da Ditadura Militar brasileira, sair de férias significava fugir do regime.
Durante a exibição de O ano em que meus pais saíram de férias, na tarde do dia 4 de abril, na sala Aloysio Biondi, fiquei tão perdida quanto Mauro. Cada toque do telefone, cada olhada de Mauro pela janela em busca do fusca azul, significava mais tensão. Como disse a professora de História Juliana Serzedello, o diretor Cao Hamburger nos deu um olhar inteligente e delicado sobre o universo infantil, sempre se mantendo no suspense pueril e inocente da criança. A todo momento, estamos esperando. No início do filme, de 2006, Mauro espera seu pai, “sempre atrasado”, de acordo com a mãe. Ao chegar em São Paulo, espera na porta de seu avô – que cuidaria dele – até descobrir que o senhor nunca chegaria em casa. Ao ficar sob os cuidados de Shlomo, o vizinho judeu do avô, Mauro olha pela janela constantemente aguardando o azul do carro dos pais.
O suspense do espectador aumenta ao longo do filme, atingindo um dos momentos mais tensos no início da Copa do Mundo de 1970. Mauro se preparou, tomou banho e arrumou a casa para quando seus pais chegassem para ver o jogo, mas eles não chegaram. Os sentimentos de decepção e abandono do menino são sentidos em maior escala pelo espectador, que sabe da possibilidade de os pais estarem mortos, presos ou desaparecidos.
Contudo, não é só de suspense que é feito o filme. Os preparativos para a Copa e os jogos em si demonstram o sentimento de união que o esporte, principalmente o futebol, cria. Em uma das cenas mais engraçadas do filme, o jovem Ítalo (Caio Blat), está na universidade com seus colegas de esquerda e todos se reúnem para ver o jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia. Em tese, eles torciam pelo segundo time, pois a vitória seria “uma vitória do socialismo”, como disse o jovem, mas na prática, todos vibravam muito mais com os gols do Brasil.
Além disso, Mauro não deixa de ser criança o filme todo. Ele joga bola com os meninos da vizinhança, vai a cerimônias judaicas com Shlomo e os amigos, espia a garçonete bonita pelo buraco do provador de roupa e assiste com entusiasmo todos os jogos da Copa – mesmo sem seus pais. Shlomo, porém, tenta rastrear os pais do menino, o que leva o judeu a até procurar um padre. Sobre esses trechos, a professora Juliana ressalta que muitos rabinos e religiosos deram apoio àqueles que lutavam contra a ditadura.
Depois da exibição do filme, houve a discussão na qual todos esses pontos foram trazidos pela professora. A timidez dos poucos participantes não foi um obstáculo por muito tempo; em clima de conversa, os alunos sentaram em roda com Juliana e com o coordenador de Cultura Geral e professor de Economia, Adalton Diniz. Quando todos se soltaram, discutimos o futebol como fenômeno de massa, e que estava, portanto, passível de uso pelos militares. Estes enalteciam a nação e maquiavam suas repressões violentas com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o”. “Qualquer governo precisa de apoio popular para se sustentar”, disse o professor Adalton, que contou algumas de suas vivências durante o regime. Ele diz que o crescimento econômico foi perceptível pela classe média: o pai dele conseguiu comprar uma geladeira, uma TV, um carro. Esse crescimento, assim como a vitória do Brasil na Copa de 70, enfatizado pelo regime a todo momento, mascarou a repressão.
“Agora, tem que ter o sangue frio”, diz a professora. Para ela, temos agora o distanciamento para perceber, longe do calor de um título mundial, o que foi esse regime para o Brasil. O filme deixou claro que, no clima confuso de 1970, o futebol foi uma das formas de garantir o sustento desse regime. 1964 foi, definitivamente, o ano que política brasileira tirou férias de 21 anos.